19 julho, 2018

O VULTO


- Há um lapso de tempo. - Foi esta a conclusão que cheguei, depois de tanto tempo observando cuidadosamente a esquina da rua. Por sempre ter sido uma rua deserta, longe de tudo, jamais despertaria a atenção de qualquer curioso que, por acaso, passasse por ali e prestasse um pouco mais de atenção.

A questão é que o lapso temporal só pode ser percebido, se alguém se predispor a ficar observando a distorção de realidade resultante da discrepância de frequência. Por sorte ou azar, eu fui esta pessoa. O que mais tenho é tempo, desde que fui atingido por uma bala perdida. O resultado do acidente, uma certa dificuldade para andar, o que me rendeu a bela aposentadoria da aeronáutica. Aposentadoria de tenente. Não é lá grandes coisa, mas é uma aposentadoria muito melhor do que muito civil por aí.

Comecei a perceber que algo estava errado, quando comecei a ver certas repetições de fatos. A princípio, pensei se tratarem apenas de deja-vu ocasional, como é bem normal acontecer com todo mundo. Mas é bem aí, que a porca torce o rabo, pois a coisa toda começou a acontecer repetidas vezes e sempre no mesmo local. Então resolvi investigar, o que acabou me levando a situação em que me encontro agora. Mas não quero me adiantar, para que as coisas façam mais sentido e eu possa, enfim, justificar os fatos.

A anomalia ficou mais clara, quando resolvi montar minha velha câmera na varanda e deixá-la filmando o tempo que desse. Confesso que tinha esperança de ver alguma coisa que olhos geralmente não veem, mas realmente me surpreendi om o resultado.

Quando fui assistir a gravação, percebi que a anomalia realmente distorcia a realidade e pude ver vultos saindo do que parecia ser exatamente o outro lado do poste de energia. Os vultos, que, diga-se de passagem, tinham a forma humana, simplesmente saiam de trás do poste, sem que o tivessem cruzado do lado contrário, exatamente como se o poste estivesse colado a um muro e não pudéssemos ver o lado direito, apenas o lado esquerdo. No entanto, não havia muro algum, pois o poste estava no meio-fio, bem na esquina da rua. Foi quando me dei conta, de que poderia estar presenciando um portal de algum tipo, vindo de não sei onde, para nossa realidade. Por isso havia um lapso temporal, que causava o tal deja-vu, que falei a pouco.

É, eu sei. Parece coisa de maluco mesmo. Eu também pensei que não estava regulando bem, mas estava ali, gravado pela câmera! Não era coisa da cabeça de um inválido desocupado, que fica imaginando coisas. Estava lá, gravado.

No início tive medo de fazer qualquer coisa a respeito, mas eu já tinha ido longe demais e, agora, minha herança militar me impulsionava a desvendar o caso; a saber que diabos era aquilo. Fiquei alguns dias pensando o que fazer e cheguei à conclusão de que não havia outro jeito, a não ser ir direto ao ponto da anomalia e tentar analisar a questão de perto.

Logo na primeira noite, para meu espanto, pude perceber de dois metros de distância, aquilo que a câmera havia gravado. No entanto, eles - os vultos - pareciam não se darem conta de minha presença. Eles surgiam do nada e, à passagem de cada um, a realidade distorcia, como a superfície de um lago em que se joga uma pedra. Foi quando resolvi tocar o local, onde estava o suposto portal interdimensional - assim passei a chamar a anomalia. Foi uma péssima ideia, pois quando estiquei o braço para toda o espaço que parecia um vazio no ar, um dos vultos atravessou de lá pra cá, percebendo-me. Ele parou diante de mim, em sua natureza disforme, como uma névoa ao vento e pareceu analisar-me. E, de repente, sem que eu esperasse, num movimento rápido, acertou-me no peito, jogando-me à três metros de distância. Embora eu estivesse tonto com o ataque inesperado, percebi que ele vinha em minha direção. Então, saquei minha pistola e disparei três tiros em sua direção. Ele imediatamente desapareceu no ar. Ainda nervoso com aquele embate sobrenatural foi quando me dei conta de que alguém estava caído ao solo, exatamente após o local onde estava o vulto. Foi exatamente assim que tudo aconteceu. Foi um acidente. Eu não imaginei que aconteceria isso. Nunca ninguém passa por ali. como eu iria imaginar que...

- Confesso que estou surpreso. Não imaginei que o senhor iria tão longe. Mas é de se admirar sua capacidade criativa. Até quando o senhor vai insistir nessa versão estapafúrdia?

- Mas estou sendo sincero! Poderia inventar qualquer coisa, mas optei por dizer a verdade.

- Sim. O senhor disse a verdade. Mas a verdade de uma pessoa normal é diferente da verdade de um  esquizofrênico. Desculpe, senhor Garcia. Mas devo continuar prescrevendo os mesmos remédios, definitivamente aumentando as doses, até que haja uma regressão de sua patologia e possamos acessar a realidade que o senhor parece ignorar.

- Eu não sou louco! Parem de me tratar como um doente! Eu sou um tenente reformado de Aeronáutica! Vocês tem que me respeitar.

- Podem levá-lo. Assim que ele for colocado na cela, administrem os remédios prescritos e aumentem em dois ml cada um.

- Não! Você tem que me escutar! Há um portal! Eles estão vindo pra cá a todo momento! Há uma conspiração em andamento...

Os enfermeiros levaram o sr. Garcia, fechando a porta atrás deles. O psiquiatra levantou-se de sua cadeira, foi até a janela e deu uma tragada em seu cigarro. No céu lá fora, as nuvens se aglomeravam prenunciando uma tempestade que logo cairia.

O psiquiatra deu mais uma tragada no cigarro e reparou em seu reflexo no vidro da janela. Percebeu que sua máscara estava torta e, por um pequeno buraco no pescoço, uma pequena sombra agitada se mostrava, como um vulto por trás de sua pele. Prontamente repuxou o tecido tapando o buraco. Novamente sua pele estava perfeita. Inspirou com vontade, apagou o cigarro no cinzeiro e saiu da sala.

20 janeiro, 2018

Encontro com um Avatar


   Anne vai subindo e entrando por entre as montanhas. Olha para as escarpas ao redor e sente receio. Isso gera um sentimento cada vez maior de insegurança e ela começa a sentir-se cansada. 

   Por entre as sombras da montanha algo se movimenta, à princípio furtivamente, porém, em seguida avança em sua direção na forma de seres nebulosos e monstruosos. Anne entra em pânico e, aproveitando-se do momento, um dos seres empunhando um estranho arco e flecha, dispara um seta veloz que atinge,  como um ferrão, o ombro direito da menina. Anne berra de dor e curva-se sobre o chão rochoso. Outros seres aproximam-se sedentos. Subitamente, uma luz irrompe em meio às sombras e os seres afastam-se, mas sem deixar o local. Observam visivelmente incomodados pela luz, enquanto soltam impropérios. No centro da luz surge uma forma translúcida, uma forma de uma grande árvore, no centro da qual começa a surgir um vulto que vai lentamente tomando a forma de um ser humano sentado na posição de lótus. O ser levanta-se calmamente e vem caminhando. 

   Anne observa o ser, porém além da dor insuportável, começa a sentir-se tremendamente fraca, dominada por confusão mental que a impede de raciocinar claramente. Em seu rosto, diversas artérias enegrecidas espalham-se cada vez mais numerosas, indo em direção a seus olhos partindo do ferimento, onde a flecha permanece cravada.

   O ser aproxima-se mais e revela-se um belo e jovem homem vestido com um suave manto dourado e os longos cabelos arranjados e presos no alto da cabeça. Sua fisionomia indochinesa é de uma serenidade profundamente reconfortante. Apesar de sua aura envolvente, ela não consegue mais discernir as coisas. O homem abaixa-se lentamente próximo de Anne, tocando com sua destra a flecha enegrecida. No mesmo instante, a seta se desfaz no ar em milhares de partículas, que vão se incendiando e desaparecendo, até nada mais restar. O horrendo e enegrecido ferimento do ombro de Anne permanece pulsante como uma criatura viva que vai alastrando-se por todo o corpo da menina. O homem toca o centro do ferimento e uma luz arroxeada cintila ao toque, tomando a forma de uma flor de lótus que, girando suavemente, vai esvanecendo até desaparecer. Em seu lugar, o ombro da menina está curado, como se nada o tivesse magoado antes. As artérias enegrecidas que cobrem o rosto de Anne começam a dissipar-se e um líquido viscoso, que parece ter vida, começa a sair por seus ouvidos, atirando-se no solo rochoso e desaparecendo entre os fragmentos de rocha, buscando esconderijo nas profundezas sombrias. 
   Anne sente-se exausta, mas o homem a ampara colocando a mão em seu ombro e olhando em seus olhos. Anne retribui o olhar.

- Maya.

   Anne escuta, sem entender a palavra que sai suavemente dos lábios quase imóveis do homem. Maya? Meu nome é Anne, pensa.

- Maya é a ilusão. Se sua mente é impura, sua terra será impura. Se sua mente é pura, sua terra será pura. O desejo é como um rei impiedoso, que nunca está satisfeito e que impera em seu coração. Não deseje e não sofra. O desejo é a alma do sofrer. Mantenha-se firme em seu propósito, porém flexível como árvores ao vento. Sua determinação é admirável, mas sua rigidez a enfraquece diante do vento dos acontecimentos. E isso te torna presa fácil do mundo de Maya.

   Anne escuta e tenta entender. Com certeza aquele era mais um ensinamento valioso como tantos outros que vinha recebendo, mas como seria possível pôr em prática aquilo? Como viver sem desejar algo? Como ser firme e flexível? Não parecia fazer sentido algum.

- Sua tarefa é descobrir o seu trabalho e, então, com todo o coração, dedicar-se a ele. Tudo o mais são ilusões para desviá-la de seu caminho. São obras de Maya. Tudo o que é passageiro é uma ilusão que nos vem incomodar. Seu coração está mergulhado na impureza, pois há ódio escondido nele e que você mesma desconhece. O ódio é como uma pedra quente que temos a intenção de atirar em alguém. Porém, é sempre aquele que levanta a pedra quem se queima primeiro. Há muitas queimaduras do passado, mas elas são exatamente isso, apenas passado. Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos fazemos o mundo.  Tudo tem seu tempo no não-tempo. Observe. Apenas observe e siga em frente.
- Mas como...?
- A paz só pode ser encontrada dentro de você mesma. Não adianta procurá-la incansavelmente à sua volta, pois estará fadada ao fracasso. – Ele sorri amorosamente. – Só há um tempo em que é fundamental despertar. Esse tempo é agora. 

   Dizendo isso, ele toca a testa de Anne suavemente com a ponta de seu indicador e um brilho intenso espoca na consciência de Anne, iluminando tudo. 
    Ela não ouve nada, não vê nada, além de luz. Luz por todos os lados. Permanece assim por algum tempo, sem saber precisar o quanto, pois não há tempo nem espaço. Seu ser amplia-se tocando em tudo, mesclando-se a tudo sem deixar de ser ela mesma. Está imersa em profunda paz. Todo o universo passa a fazer sentido. Tudo é muito simples. Tão simples como as pessoas jamais imaginaram ser possível. Anne percebe o quanto as pessoas dificultam tudo tornando complexo e difícil o mundo, o universo, a vida. Todas as coisas são passageiras, ela sabe. E não está separada de nada. O universo é um só, onde Deus, deuses, seres e mais seres são partes de uma só coisa, uma só imensidão de paz e luz.
   De repente, ela abre os olhos e está novamente na silenciosa sala. Em sua frente, Helena sorri com os olhos marejados de lágrimas. Anne não compreende bem a situação. 

- Minha querida. Não tens a menor idéia de quem esteve contigo, não é?

   Anne faz que não entende.

- Só tive esta oportunidade muitos anos depois de iniciar meus estudos com os mestres do oriente. Você, em tão poucos meses, já recebeu a visita de um grande mestre.
- Mestre? O homem bom de manto dourado, que disse coisas profundas?
- Sim. Não sabes quem era ele? Nem imaginas?

   Anne, despreocupadamente, porém interessada, faz que não com a cabeça.

- Oh, querida! Já vens estudando algumas coisas sobre o budismo. Estiveste com Sidarta Gautama, um dos Budas. Poucos um dia conseguiram estar com ele em suas meditações. Estamos praticando há apenas alguns meses e você já teve a oportunidade de encontrá-lo no mundo espiritual. Acabaste de receber um grande presente.

   Anne tenta entender a dimensão do que Helena estava dizendo, da importância de tal encontro, mas era muito difícil para alguém que soubera da existência de Buda apenas por breves citações em alguns livros da estante da sala de tia Rita e das imagens gordinhas e sentadinhas de pernas cruzadas e que nada pareciam com o homem que ela acabara de conhecer. Fora isso, não tinha mais qualquer referência sobre o Buda.

- Anne, sei que ele te passou alguns ensinamentos.
- Sim.
- Pois medite sobre eles. No momento, podem parecer difíceis e, até mesmo, sem sentido mas, com o tempo e a meditação continuada, você começará a acessar egrégoras de forma pensamento mais elevadas e tudo começará a clarear. Tenha paciência e aplique-se com esmero aos estudos. Disciplina é a base de tudo. A partir de agora, além das poucas citações a que teve acesso dentro dos ensinamentos budistas, você acrescentará a teus estudos, a filosofia budista em sua essência primordial e sem os desvirtuamentos tão comuns às tantas vertentes que se seguiram com o passar das dezenas de séculos. Somente aqui em Shambala é possível tomar contato com a pureza dos ensinamentos de Sidarta.
- Sim, D. Helena. Eu vou me esforçar cada vez mais. E sempre me interessei por tudo que tenho aprendido. Tenho certeza de que vou gostar muito de aprender sobre o budismo.
- Por favor, querida, desde que chegou aqui, que quero te dizer isso: chame-me apenas de Helena. - Diz, abrindo um grande e terno sorriso.

   Anne sorri e faz que sim com a cabeça. No peito ainda sentia a sensação de paz daquele lugar para onde Sidarta a enviara. Mas será que ele a enviara mesmo para algum lugar? – Pensava. Talvez, segundo o que ele disse sobre a paz estar dentro de nós mesmos, ele só tivesse mostrado algo que estava dentro dela mesma, sem que ela nunca tivesse se dado conta disso. Enquanto pensava sobre isso, deu-se conta de que algo estava diferente. Resolveu calar o raciocínio e apenas sentir. Fechou os olhos e deixou a respiração tranquila. Em poucos instantes, abriu um sorriso. Meu Deus! – Pensou. Nada! Não há nada! – Disse para si mesma. Sim. Sua mente estava quieta. Não havia mais pensamentos pulando feito macaquinhos de um lado para o outro, impedindo-a de concentrar-se. Tudo estava silencioso em sua mente, quando ela calava o raciocínio ordinário. Agora, sim. Ela tinha certeza de que as coisas começariam a dar certo.
   Helena levantou-se sorrindo, entendendo os pensamentos animados de Anne e orgulhosa do progresso rápido de sua pupila. 

- Observe. Mesmo quando chegas à conclusão de que há o vazio, acabaste de preenche-lo com a o raciocínio desta certeza. – Helena piscou um dos olhos, enquanto sorria. Anne também sorriu, entendendo perfeitamente as artimanhas de sua própria mente. O Nirvana não seria atingido tão facilmente, soube.

  Anne seguiu sua mestra e Helena a convidou para um passeio pela cidade. As duas cruzaram os imensos umbrais dourados da sala, fechando a porta atrás de si.

Trecho de 'Anne Blind entre Luz & Trevas'
Em breve nas melhores livrarias.

23 dezembro, 2017

A Verdadeira BRANCA DE NEVE


O conto de fadas A Branca de Neve e os Sete Anões, dos Irmãos Grimm, já deu asas à imaginação de várias gerações. Mas fatos sugerem que a heroína das crianças tenha sido mais do que uma simples personagem fictícia.

Milhões de pessoas conhecem o conto de fadas da Branca de Neve, a bela princesa que escapa de sua madrasta invejosa e vai viver na casa de sete anões. Na história escrita pelos alemães irmãos Grimm em 1812, a madrasta má tenta matá-la depois de seu espelho mágico lhe dizer que Branca de Neve é "a mais bela de todas".

Moradores da cidade alemã de Lohr am Main, próxima a Frankfurt, gostam de acreditar que o espelho mágico realmente existe. Na verdade, ele está na cidade, exposto no Museu Spessart. Isso é porque, de acordo com algumas fontes, a menina que inspirou o conto de fadas, de fato viveu em Lohr am Main.

Entretanto, a verdadeira Branca de Neve, Maria Sophia Margaretha Catharina von Erthal, era um pouco diferente da princesa da história. Ela era de origem nobre e nasceu no ano de 1729 no castelo de Lohr, que hoje abriga o Museu Spessart. Ela também tinha uma madrasta dominadora: Claudia Elisabeth Maria von Venningen.


Eckhard Sander e suas pesquisas

Segundo o pesquisador e estudioso alemão Eckhard Sander, que escreveu um livro, fruto de suas pesquisas, intitulado 'Branca de Neve: É Um Conto de Fadas?', lançado em 1994.

O livro de Eckhard Sander
Margaretha de Waldeck, nasceu em 1533, filha do Conde alemão Philip IV, da casa real de Waldeck-Wildungen. Em 1546, aos 16 anos de idade, Margarete foi obrigada por sua madrasta, Katharina de Hatzfeld – com quem não tinha um bom relacionamento -, à mudar-se para Bruxelas. Na Corte de Bruxelas, ela chamaria à atenção de ninguém menos que o príncipe Filipe (futuro Filipe II da Espanha), apaixonado-se e tornando-se sua amante, para desgosto de sua madrasta, que intrometia-se sempre na vida de sua enteada.

No entanto, a ideia de que a jovem pudesse tornar-se uma princesa, foi insuportável para o pai de Filipe, Carlos V, que via na união de seu herdeiro com a jovem, um matrimônio politicamente desvantajoso. Sander escreveu que von Waldeck morreu aos 21 anos de idade, em 1554, envenenada por autoridades espanholas às ordens do pai de seu amado.

De acordo com sua pesquisa, o método de utilizar veneno, foi escolhido para afastar a suspeita de um assassinato, justificado então, por uma doença degenerativa. Sander também citou evidências para sua alegação, como o testamento que a jovem escrevera pouco antes de morrer, com uma caligrafia frenética e torta, mostrando os típicos sintomas de uma vítima de avançado estágio de envenenamento.

Embora não possamos afirmar se von Waldeck fora de fato morta por veneno, uma coisa é certa, contrariando a história tradicional, a jovem não fora assassinada por sua madrasta, que já havia falecido antes de sua morte. Mesmo não sendo exatamente igual ao conto de Branca de Neve, a história traça bastante paralelos em comum. Margarete era uma bela jovem alemã, atormentada por sua madrasta malvada, que apaixona-se por um príncipe e é envenenada. Sander apontou outras similaridades entre a Branca de Neve fictícia e von Waldeck, sendo uma delas, a maçã envenenada.

Ele acredita que a maçã fora acrescentada à história de von Waldeck, após um acontecimento histórico na Alemanha, onde um homem foi preso após dar à crianças que ele acreditava que o haviam roubado, maçãs envenenadas para que pagassem por seus crimes. Ele também apontou que, assim como no conto dos Grimm, Margarete possuía os cabelos louros. Outro ponto interessante, é que a jovem cresceu na região de Bad Wildungen em Hesse, Alemanha, onde crianças que trabalhavam em condições precárias em uma mina de extração de cobre, eram referidas como ”anões”.

Os passos da princesa 

Os detalhes da história também podem ser acompanhados no museu, incluindo a trama de assassinato e a fuga de Branca de Neve pelas montanhas até chegar à casa dos sete anões. Na verdade, os anões eram provavelmente crianças que eram usadas como trabalhadores, como citamos acima.

Acredita-se que a rota de fuga da Branca de Neve tenha sido de 35 quilômetros por meio da cadeia de montanhas de Spessart, uma das maiores áreas de floresta decídua da Alemanha. Sinais ao longo da rota dão aos visitantes a chance de aprender mais sobre a ligação das florestas com os contos de fadas.

O posto de informações turísticas em Lohr am Main oferece programas especiais de caminhadas. Também fornece informações sobre atrações locais, como a cidade velha, com suas casas em estilo enxaimel, o histórico bairro dos pescadores e a antiga câmara municipal.

É claro que a atração imperdível da cidade é o castelo de Lohr e o Museu Spessart, que abriga uma coleção de espelhos fabricados na região. 


22 setembro, 2017

A Verdadeira História de CHAPEUZINHO VERMELHO

Contos de Fada fazem a alegria de crianças em todo mundo, abrindo as portas para reinos de imaginação e de sonhos, onde tudo é possível. Mas nem sempre foi assim.


As primeiras versões de algumas das mais conhecidas fábulas infantis não tinham nada de encantadoras ou alegres, muito pelo contrário, elas eram horrendas, violentas e grotescas. Serviam acima de tudo como parábolas sobre moralidade e comportamento. Nelas as crianças que não agiam conforme o esperado, sofriam, eram repreendidas ou simplesmente morriam de forma aterrorizante deixando uma lição de moral.

Um dos contos de Fadas mais famosos de todos os tempos, "Chapeuzinho Vermelho" pode parecer inocente para a maioria, mas quando a fábula surgiu, ela era muito diferente. Haviam conotações ocultas que tornavam a história da menina que leva doces para sua avozinha algo bastante sinistro. 

A origem de "Chapeuzinho Vermelho" (Little Red Riding Hood) pode ser traçada até muito antes do século XVII, quando surgiu sua primeira versão escrita. Antes ela já figurava no folclore e tradições orais de vários países da Europa. Algumas destas versões eram bastante diferentes, embora diversos elementos fossem comuns e pudessem ser reconhecidos. A fábula era contada por camponeses franceses no século XI, documentada pelo historiador Egbert de Liege em 1550. Na Itália, ela era popular entre camponeses desde o século XIV, sendo que existiam várias versões, incluindo "La finta nonna" (A Falsa Vovozinha) uma das mais difundidas. Chapeuzinho foi reescrita várias vezes, inclusive por Ítalo Calvino que a acrescentou em seu compêndio de folclore. Versões da mesma fábula também podiam ser encontradas na Suécia, Noruega, Alemanha, Países Baixos e Espanha.

Essas primeiras variações da fábula se diferem das versões atuais em vários aspectos. O antagonista principal nem sempre é o "Lobo Mau", o monstro algumas vezes é retratado como um ogro, vampiro ou troll. Em algumas versões, a criatura é um lobisomem, o que tornou a história extremamente relevante nos julgamentos de criminosos suspeitos de licantropia durante a Idade Média. O famoso Julgamento de Peter Stumpp, na Alemanha, se valeu da fábula para enquadrar o acusado.

[Sobre esse caso chocante, leia AQUI]


A história em algumas versões era realmente bizarra.

O lobo deixava o corpo da velhinha para a criança se alimentar, dizendo que se tratava de carne de cordeiro. Faminta pela sua jornada, a criança comia avidamente e canibalizava a própria avó. Em outra versão, o lobo confronta a velha e a obriga a remover suas roupas ou jogá-las na lareira. A velha fica aterrorizada por ser forçada a se desnudar diante da fera, mas o lobo diz: "Não se preocupe, não é essa a fome que eu pretendo saciar!". Finalmente quando a mulher está despida, ele a devora. Em uma versão especialmente aterrorizante, a história termina quando a menina deita com o lobo na cama e este a mata. Numa outra, chapeuzinho percebe o disfarce do lobo que assumiu a identidade da avó, e se desculpa, retornando para a floresta, alegando que havia esquecido a cesta que carregava. O lobo no entanto, amarra um barbante no pé da criança e a persegue pela floresta em uma caçada implacável. Em boa parte das histórias não existe sequer a figura do caçador. A menina fica por conta própria, precisando enfrentar o medo e a ameaça do lobo recorrendo apenas a sua inteligência. Na Espanha, a menina dá lugar a uma adolescente que tenta escapar de investidas claramente sexuais por parte do lobo. Na Polônia, a menina dá lugar a um rapaz. O capuz vermelho está quase sempre presente, mas em algumas versões a protagonista usa uma capa feita de folhas verdes.  

Em uma versão francesa, Chapeuzinho escapa graças à ajuda de uma lavadeira que aconselha a menina a pular em um rio e se manter debaixo d'água. Quando o capuz vem à tona, o lobo acha que a criança se afogou e vai embora. Na Ucrânia, o lobo é empurrado no fogo pelo espírito da avó que ressurge como um fantasma para salvar a menina no último momento. No final dessa história, a menina é severamente repreendida pelo fantasma da avó que culpa a neta por ter sido tola e ter causado sua morte. A menina adota a identidade da avó e passa a morar na casa que pertenceu a esta como compensação.

Especialistas em folclore conduziram uma pesquisa em 2009 na qual identificaram 58 versões diferentes de Chapeuzinho Vermelho.


A versão impressa mais antiga tem o título "Le Petit Chaperon Rouge" e teve sua origem em meados de 1670. Ela fazia parte de uma coleção de fábulas a respeito de moral e comportamento infantil. Nessa versão Chapeuzinho Vermelho pegava um atalho apesar da mãe alertá-la para nunca fazê-lo. Por conta disso, o lobo encontrava a menina e matava sua avó. O conto deixava implícito que a culpa pela tragédia era unica e exclusivamente da criança que não obedecia as instruções da mãe.

Em 1697, Charles Perrault escreveu uma das versões mais conhecidas da fábula que foi responsável por popularizá-la em toda Europa. Esta é possivelmente uma das versões mais violentas e sinistras de Chapeuzinho Vermelho. A menina conforme a descrição de Perrault é "atraente e bem criada", quase uma adolescente, nascida em uma aldeia no interior da França. Na história, o lobo engana a menina e a convence a revelar a localização da casa de sua avó. O lobo age de forma simpática, engana e seduz sem jamais parecer malvado. A seguir, ele corre até a casa, evitando um grupo de lenhadores que haviam advertido a menina do perigo de falar com estranhos. Chegando na casa, o lobo devora a velha de maneira sangrenta. "As mordidas arrancam pedaços e dilaceram seu corpo".

Ele então veste os trajes da avó e prepara sua armadilha. A menina chega e embora desconfie de que algo está errado, acaba cedendo ao pedido do lobo disfarçado para que suba na cama. O lobo então a ataca com a mesma violência e a devora viva. A história se encerra dessa maneira, com o lobo emergindo como o vencedor e todas as demais personagens caindo como vítimas. 

Não existe final feliz, Perrault explica a moral da história no último parágrafo para que não reste nenhuma dúvida de seu significado:

"Com essa fábula aprendemos que crianças, especialmente moças jovens, bonitas e bem nascidas, correm perigo ao falar com estranhos. Lobos, afinal de contas, podem espreitar em qualquer estrada. Nós dizemos "lobos", mas nem todos lobos são iguais, alguns são simpáticos e agradáveis - não são selvagens ou furiosos, mas domados. Eles seguem as jovens pelas estradas e ruas, se preciso, até suas casas. Por sinal, é bom saber que esses lobos gentis e simpáticos, são de longe os mais perigosos!".  

Esta versão presumivelmente a original da fábula escrita na França se tornou popular na corte do Rei Louis XIV. O Rei costumava entreter seus convidados em festas extravagantes e estes sem dúvida conseguiam entender perfeitamente o sentido da história. O termo "lobo" começou então a ser associado a homens interessados em assediar e perseguir moças mais jovens.

No século XIX os irmãos Jacob  e Wilhelm Grimm - conhecidos como Irmãos Grimm, adaptaram a história e introduziram elementos inovadores na trama. A primeira parte da trama adaptada é bastante semelhante a história de Perrault, entretanto eles modificaram o final: a menina mata o lobo depois de reconhecer se tratar de uma fera disfarçada. Ela consegue empurrar o lobo na direção de uma lareira acesa e este morre queimado. A avó, no entanto, não sobrevive.

Em uma segunda revisão, os irmãos escreveram nova mudança, a menina e a avó são devoradas pelo lobo, mas na última hora um caçador atrás da pele da fera o mata. Ao abrir a barriga do lobo encontra avó e neta em seu interior ainda vivas. A lição de moral é transmitida, mas sem o trauma da morte ou tragédia.

Em 1857, Chapeuzinho Vermelho já havia se tornado a história de maior sucesso dos Irmãos Grimm e eles decidiram fazer uma terceira versão que amenizava ainda mais o final. Nela, incluíram a menina reconhecendo o disfarce do lobo e fugindo sem ser devorada. Ela corre para o caçador e este mata a fera e remove a avó de sua barriga. Essa talvez seja a versão mais próxima da história que ouvimos quando criança. Nela, ninguém morre, a não ser o "pobre" lobo mau. É curioso que os Irmãos Grimm, conhecidos por escrever histórias de conteúdo macabro tenham decidido atenuar justamente essa narrativa e adotar um final feliz.

Além do alerta contra falar com estranhos e trilhar caminhos desconhecidos, a fábula de Chapeuzinho Vermelho sempre esteve aberta a interpretações de caráter sexual. A história pode ser encarada como uma alegoria a respeito do ritual de passagem da infância para a puberdade. A menina deixa de ser criança e transforma-se em adulta no momento em que sai da barriga do lobo. O capuz usado por ela, vermelho, claramente alude à primeira menstruação. Sigmund Freud também usou o conto como uma alegoria de amadurecimento e renascimento.

É curioso que a origem de alguns dos mais famosos contos de fada encontre-se ligada muito mais ao horror do que a fantasia. Estas pequenas histórias não surgiram como uma forma inocente de entretenimento infantil, mas como chocantes revelações visando ensinar aos pequenos como o mundo real poderia ser assustador e perigoso. 

*     *     *

Para quem achou interessante, indico o filme "A Companhia dos Lobos" (The Company of Wolves/ 1984) que reconta de uma maneira aterrorizante a fábula de Chapeuzinho Vermelho e que me assustava terrivelmente quando eu era criança.

As cenas da transformação e do lobo emergindo de baixo da pele de uma pessoa, com o focinho brotando de dentro da boca sempre me causaram pesadelos. Hoje em dia, o estilo chocante e a aura quase barroca do filme perderam um pouco seu poder de sugestão - é difícil assustar nos dias atuais, mas quando assisti esse filme (ainda criança) fiquei positivamente apavorado. 

Desde então, jamais encarei Chapeuzinho Vermelho como uma história de ninar. A não ser para quem quer ter pesadelos depois de ouvi-la.

Aqui está o trailer de Companhia dos Lobos:


12 setembro, 2017

O ÚLTIMO XAMÃ

Nasci no meio do deserto. Para ser mais exato, dentro da reserva Los Coiotes. Meus pais eram filhos de antigos pioneiros que haviam desbravado o grande desconhecido oeste da América. Desconhecido e perigoso. Apesar de toda uma caravana ter sido massacrada, meus avô foi poupado. George Oldtown era seu nome. Falava um pouco de algumas línguas indígenas; fragmentos; mas acredito que o que lhe tenha salvado a vida fora a medicina. Isso mesmo. Meu avô era médico e sabia o valor de uma vida, como poucos naquela época e ainda hoje. A verdade é que foi realmente poupado. Tornou-se o único verdadeiramente amigo dos índios, sobretudo do velho xamã da tribo que, posteriormente, lhe apresentou a outros xamãs de outras tribos de Cahuilla e de Cupeno.

Um dia, como não poderia deixar de ser, meu avô enamorou-se de uma bela índia, filha de um dos chefes e teve que passar por verdadeiramente difícil prova, quase perdendo a vida, para que pudesse finalmente merecê-la. Nunca soube ao certo como teria sido esta prova, pois tive muito pouco contato com ele. Era muito pequeno, quando um dia ele sentou-se debaixo da árvore, no alto da colina e simplesmente adormeceu para sempre. Lembro-me de fragmentos de diversas histórias que me contava, quando eu ainda era bem novo, mas nada além disso. Meu pai, por sua vez, sempre fora muito calado e nunca me falou muito sobre ele.

Minha família, portanto, tem ancestrais dos dois lados, brancos e índios. Apesar da modernidade, mantivemos a maior parte de nossos costumes, mesmo com a sedução midiática da TV e do rádio. Nunca chegamos de fato a excluir os costumes do homem branco, no entanto, sabíamos separá-los de acordo com o que era realmente relevante e sadio.

Apesar de calado, às vezes meu pai abria a boca para contar histórias, num tom que quem já estava pensando naquilo há algum tempo e precisava falar, como uma forma de não esquecer. Por mais que me contasse das absurdas e violentas atitudes da maioria dos brancos em relação ao índios, de forma a dar-me consciência de que apenas meu avô tinha convivência amigável e respeitosa com eles, enquanto outros os massacravam de diversas formas através da história da América, só realmente dei-me conta disso há pouco tempo, quando forasteiros chegaram à nossa reserva, com “boas intensões”. Logo mostraram sua verdadeira cara, apresentando documentos, que praticamente nos expulsavam de nossas terras. No entanto, era nossa reserva, nossa terra e, por mais poderosos que fossem seus amigos do governo, resistimos com tudo que tínhamos. Mas os tempos têm suas próprias razões e a vida misteriosa traça caminhos quase sempre muito estranhos. Numa emboscada muito bem articulada, mataram praticamente toda a tribo.

Antes que tudo isso acontecesse, como que prevendo o desenlace trágico, meu pai entregou-me uma mochila cuidadosamente preparada e mandou-me esconder nos desfiladeiros, dizendo-me que não voltasse, até que ele mesmo fosse me buscar. No entanto, depois de todo um dia de espera, resolvi desobedecer e voltar por conta própria.

À medida que me aproximava, vi uma coluna de fumaça. Meu coração acelerou rapidamente. Mesmo sem entender, podia sentir no íntimo a tragédia que se abatera sobre todos nós. A casa queimava o que restara de sua estrutura e meu pai estava amarrado ao curral. Embaixo de seu corpo sem vida, uma enorme mancha de sangue, que o solo seco do deserto absorvera em grande parte.

Corri para o outro lado tentando entender o que acontecera e procurando por minha mãe, mas não pude achá-la, senão alguns minutos mais tarde e, mesmo assim, não a reconheci de imediato. Estava desfigurada e irreconhecível. Mas então, vi o colar de meu avô, que fora usado para estrangulá-la. 

Caí de joelhos e, sem poder mais conter-me, chorei. Nem sei por quanto tempo fiquei ali, enquanto as lágrimas desciam.

Depois de passado um tempo que jamais saberei dizer ao certo, levantei-me e, voltando-me para sudoeste, pus-me em direção da tribo Cahuilla. Corri o mais rápido que pude, até que, tomado de horror, vi cenário semelhante descortinar-se à minha frente. Fumaça, destruição e morte. A cena era horripilante.

Em estado de choque, perambulei pela tribo, entre cadáveres mutilados e carbonizados. 

De repente, escutei um murmúrio. Corri em sua direção e encontrei o velho xamã sob parte do couro que cobria a entrada de sua casa. Seu crânio estava afundado na parte superior esquerda e seu nariz sangrava muito. Com o pouco de voz que lhe restava, contou-me o que acontecera com meus pais. 

Chorei. Chorei de tristeza. Chorei de desespero. Chorei de raiva.

Quis saber o porquê de tudo aquilo, mas o velho amigo xamã já não pertencia a este mundo. Então levantei-me e olhei ao redor tentando ver alguma coisa por trás das lágrimas que embaçavam-me a visão. A morte estava por toda parte e eu estava sozinho. Nada mais restara. Ninguém sobrara, a não ser eu, ali, de pé, olhando e não querendo ver nada daquilo.

Fiquei por ali algum tempo, até que resolvi voltar para casa. Perambulei sem forças e sem pressa. Queria que tudo não passasse de um pesadelo sem sentido, do qual acordaria a qualquer instante, mas não acordei nunca mais.

No dia seguinte, sentindo-me um corpo sem alma, enterrei meu pai, mas não tive coragem de fazer o mesmo com minha mãe. Não fui capaz de suportar a visão de seu corpo em pedaços novamente. Os coiotes viriam. Eles viriam e conduziriam seu em nova vida, através de suas próprias vidas. Não era desumano, como a tradição do homem branco consideraria, mas sim, respeitoso. A Mãe Terra cuidaria do que não fui capaz de cuidar, através de seus filhos, nossos guardiões na tradição de meu povo.

Senti que precisava ir embora. Aquele não era meu mundo. Meu mundo era onde todos viviam felizes; meu pai, minha mãe, os amigos… Meu mundo era belo de sua maneira. Aquele não era meu mundo. Eu não queria que fosse, embora eu soubesse que era e nada pudesse fazer para que tudo voltasse a ser como era antes.

Resolvi partir à noite. A lua estava cheia, então o caminho estava claro. Levei o que pude, além da mochila, sem e preocupar com o peso. Já no meio da madrugada queria me desfazer da maioria das coisas que carregava, pois era impossível continuar com tanto peso. Joguei pelo caminho o desnecessário e levei o que pude de comida. No meio da madrugada, percebi a presença de alguns coiotes, que acompanhavam-me de longe. Andaram junto comigo por várias horas e depois desapareceram. Antes do dia amanhecer, aconcheguei-me numa fenda do desfiladeiro e caí num sono pesado e agitado por imagens de fogo, morte e desespero, entremeados por visões de águias, rituais, imagens do xamã que me abençoava e momentos em que sentia-me flutuar acima das montanhas.

Acordei com o sol queimando furiosamente meu rosto. Já devia ser metade do dia, pois o sol estava quase no meio do zênite.

Voltei a andar em direção ao sul, sem saber para onde estava indo e o que encontraria. Era preciso dar as costas para tudo, ou o passado me perseguiria implacavelmente. É duro ter que admitir isso, mas é a única solução. Ainda assim, é possível que ele venha atrás de mim, exigindo a vingança que eu não quero brandir. Melhor é virar as costas e acreditar que a vida agora é outra, pois o caminho segue em frente, sempre em frente. O resto não importa. Simplesmente não importa.

07 junho, 2017

O Primeiro Contato Imediato de Quase Terceiro Grau

Enquanto estava ali sentado na sala vermelha, com sofás vermelhos e almofadas vermelhas, escutando o som relaxante que tocava no aparelho de som, observava o tempo escorrendo lentamente numa ampulheta imaginária. A mente divagava entre nervos semi-alertas, que mantinham meus sentidos aguçados, na quase expectativa da chegada de alguém.

Uma serra cortava ao longe; restos de uma obra insistente e inconvenientemente atravessando a tarde do sábado.

Sempre achei que ninguém deveria trabalhar aos sábados. Apesar do absurdo social, que faria tudo utopicamente parar, agradavam-me ideais semelhantes, pela possibilidade do sossego sempre bem-vindo.

O silêncio e a quietude sempre me fizeram prestar maior atenção em mim mesmo, nas sensações corporais, movimento da respiração etc. Às vezes sento e simplesmente observo-me, sem julgamentos; outras vezes uma inquietação fútil e sem sentido tortura-me, até que resolvo jogar para o alto qualquer suposta explicação que a justifique, retornando lentamente à agradável calma de sempre.

Foi numa dessas vezes que, sentado na velha poltrona vermelha de sempre, algo realmente inusitado aconteceu.

Eram mais ou menos umas dezesseis horas, quando senti o ar da sala resfriar repentinamente. Não foi uma leve oscilação na temperatura; ela deve ter despencado uns quatro graus em segundos. Pelo menos, foi esta a sensação térmica que tive. Como nunca passara por situação semelhante antes, olhei ao redor procurando algo que justificasse a mudança de temperatura, mesmo sabendo de antemão, que a sala estava exatamente como sempre estivera.

Do lado de fora, embora o tempo estivesse meio parado, repentinamente, as plantas começaram a agitarem-se, como se um vento descesse exatamente sobre elas.

Abri a porta e, para minha surpresa, não havia nenhum sinal de vento, embora elas continuassem se mexendo.

Olhei para cima e o céu estava limpo e azul, apenas isso. As plantas continuavam a sacolejar sem motivo aparente. Achei o fenômeno extremamente curioso. Então, voltei para dentro e, sentado novamente no sofá vermelho, fiquei observando-as em seu ballet sobrenatural, para ver no que isso daria.

Em determinado momento, percebi que o ar oscilou lentamente na minha frente, como ao tocarmos na superfície da água. E a oscilação continuou, somente que, agora, deslocava-se pela sala, até parar diante da porta de entrada da casa, que dá para a área externa e, posteriormente, para a rua.

No mesmo instante, senti um arrepio eriçar os pelos dos braços e nuca; sabia que não estava sozinho ali.

Fiquei olhando para a oscilação, já bastante tenso, quando pude escutar claramente, como se alguém falasse através de um equipamento de alta-fidelidade sonora. Só não tinha mesmo certeza se escutava de fato, ou se a coisa toda estava acontecendo dentro de minha cabeça; como sabê-lo?

- Não tenha medo. Não lhe faremos mal.


No mesmo instante, todo o nervosismo simplesmente desapareceu, como por encanto. Eu estava tão tranquilo, como se nada de anormal estivesse de fato acontecendo. Mas estava.

Logo em seguida, voltaram a falar.

- Temos percebido teu interesse em nós, já há algum tempo e, esperamos até o momento que estivesse mais preparado, para apresentarmo-nos diante ti… Compreendemos teus questionamentos neste momento e, respondendo-te da forma mais adequadamente possível, diante de teu conhecimento atual, afirmamos que somos teus irmãos de outros lugares do cosmo.

Apesar da revelação, confesso que não fiquei tão surpreso, dentro das devidas proporções, como julguei que poderia ficar, quando achei que isso acontecesse. Sempre li bastante sobre o assunto e não era de fato algo fora de meu conhecimento. Acredito mesmo, que senti até certa satisfação.

Eles retomaram.

- Neste primeiro encontro não nos apresentaremos visivelmente. Há necessidade de certo preparo para que consigas manter a calma, sem que precisemos intervir em teu sistema nervoso, como fazemos agora… Voltaremos a contatar-te muito em breve. Procure evitar alimentação pesada, optando por uma alimentação baseada exclusivamente em vegetais e frutas… Fique em paz.

No mesmo instante, a oscilação desapareceu e as plantas deixaram de sacudirem-se. Sentia-me calmo e, até mesmo, alegre com o acontecimento surpreendente.

Saí novamente ao jardim e olhei para o céu outra vez, esperando apenas ver o mesmo céu azul de antes, mas havia um pequeno ponto ovalado há muitos quilômetros de altura, quase imperceptível, pelo menos para mim, que uso óculos. Ele ficou ali, parado por alguns segundos e, depois, disparou velozmente em direção às montanhas, até sumir de vista.

Então ouvi a campainha tocar. Era meu aluno que acabara de chegar. Entrei para dar aula.


18 maio, 2017

Câncer e Conchas


Há muito tempo que passo o início do outono na casa de praia. Na verdade, foi a única coisa que me sobrou, depois que, há alguns anos descobri que tinha câncer e, como aquela velha história de que algo ruim nunca vem sozinho, fui demitido e deixei de fazer parte do quadro de funcionários da maior empresa de telecomunicações do país.

O tempo passou e acabei torrando tudo de minha conta bancária, em duas fases de tratamento quimioterápico entremeadas por uma maldita metástase. O apartamento foi-se em seguida, para poder pagar os remédios. Então, simplesmente desisti. Numa manhã de quarta-feira, peguei algumas roupas e me mandei da cidade, dos amigos e inimigos, da minha lanchonete preferida, que ficava na esquina... Me mandei daquela vida. Faziam mais ou menos uns seis meses que morava exclusivamente aqui, na casa de praia. Saía muito pouco, apenas para comprar algum mantimento. Ficava a maior parte do dia aqui, sentado, olhando o mar.

Emagreci bastante. Acho que perdi uns quinze quilos. Não importa.

Foi num dia desses, como qualquer outro, que acabei adormecendo na cadeira de balanço, sem sequer perceber o cair da noite. A brisa fresca era um alento e ajudava a aliviar as dores. Às vezes era bem difícil, apesar da morfina e da cannabis, que ajudavam à aliviar um pouco. Nestas horas era muito difícil conciliar o sono, pois a dor diminuía, mas quase nunca ia embora totalmente. Então, tinha mesmo que aproveitar qualquer oportunidade de trégua, para desligar-me desse mundo. 

Foi numa dessas vezes que ela apareceu.

Acordei e já era noite. Pensei ter ouvido alguém falar comigo. Um destes ecos ressonando na memória de lembranças de tempos que já tinham sido esquecidos e que voltam como fantasmas a reclamar a atenção, com medo de se perderem numa eternidade sem fim.

Ainda estava sob o efeito do sono, os olhos meio secos e levei algum tempo, antes de percebê-la parada nos primeiros degraus da escada, observando-me na quase penumbra, com um suave sorriso.

Tentei falar alguma coisa, mas a voz não saiu por conta de um pigarro cretino. Pigarreei e perguntei finalmente, totalmente desconfortável com a visita inesperada. Eu não recebia visitas; eu não gostava de receber visitas.

- O que você quer?
- Eu vim te buscar. - Ela disse.

Minha mente estava confusa e demorarei a concatenar as ideias, quando, finalmente, a ficha caiu.

- Mas quem é você? O que você quer?
- Eu já disse: vim te buscar.
- Mas quem diabos é você?
- E isso importa?
-  Mas é claro que importa! Então, eu acordo com uma mulher, que eu nunca vi na vida, me olhando, tomo um susto, ela me pergunta algo que não faz o menor sentido... Quer dizer, acho que disse... e ainda tenho que encarar isso como uma coisa normal?
- Eu sempre venho.

Ela tinha feições de menina, usava uma roupa estranha, como se fosse um vestido de escamas brilhantes, que cintilavam as cores do arco-íris.

Quando dei por mim, já havia levantado e caminhava a seu lado pela areia da praia.

- Preciso entender tudo isso, balbuciei.
-  Você está morrendo. - Disse-me ela. - Escutei o lamento e a revolta em teu coração. Então, resolvi que era hora de vir.
- Você, por acaso, é a morte?
- Não. A morte é bem diferente de mim. À vi poucas vezes.

Achei aquilo tudo ridículo e tive vontade de expulsá-la, mas não consegui. Havia algo de muito mais importante naquele momento e que eu não sabia dizer ou entender realmente o que era.

- Então, quem é você?
- A última amiga que te sobrou, depois que você afastou todos os outros.
- Mas eu nem te conheço.
- Não importa agora, não é mesmo?

Pensei por uns instantes. Era mesmo. Não importava. De certa forma, até estava apreciando aquele momento de realidade desalinhada.
Caminhamos pela areia sob a luz da lua, em silêncio, então; apenas apreciando a companhia um do outro.
E esta é a última lembrança que eu tenho, de quando ainda era humano.