Mostrando postagens com marcador Novela. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Novela. Mostrar todas as postagens

27 agosto, 2020

TRANSIÇÕES

Eu esperava todos os dias meu pai chegar do trabalho. Ficar perto da porta era como uma atração inconsciente, que me levava até lá e me punha em prontidão. Ficava olhando através daquele vidro irregular, que pouco deixava ver do lado de fora, senão, quando muito, um borrão de cores, mas em meio a qual eu conseguia distinguir o movimento, a aproximação de meu pai.

Lembro que minha mãe achava graça e, como que para comprovar e se divertir com meu impulso inconsciente, me chamava, fazendo sugestões para alguma outra distração, mas a atração pela posto de prontidão era invencível; eu sempre voltava para o mesmo lugar e continuava esperando por meu pai.

É engraçado falar sobre isso hoje, pois o tempo foi orquestrando mudanças nessa admiração, através de acontecimentos desagradáveis que começaram a surgir no meio do caminho. Ou talvez já estivessem presentes, de uma forma ou de outra, mas eu não me dera conta disso, senão mais tarde, quando tive maturidade suficiente para perceber que alguma coisa estava errada. O fato, que ficou cada vez mais claro com o tempo, desde quando comecei a perceber a existência de alguma discrepância nos relacionamentos, é que não era nada as mil maravilhas que uma criança imagina. As diferenças, as dores, os erros, as mágoas... Tudo isso começou a ganhar uma dimensão cada vez maior à minha percepção e o cinza foi tomando o lugar da cores, enquanto eu despertava ara a realidade de que meus pais não eram apenas imperfeitos, mas tinham coisas muito ruins, sobretudo meu pai. Sei que parece ingratidão falar sobre isso, ainda mais por eu não ter sofrido uma vida de violências e carências extremas, muito pelo contrário, tive uma vida até boa neste sentido, mas a questão é que existem outras sutilezas capazes de nos arrastar lentamente para uma desilusão que estava longe de ser produtiva e fortalecedora. Algo me incomodava muito e cada vez mais, tornando-se um ponto em desequilíbrio nervoso, uma raiva inconsciente e a qual não conseguia explicar.

O tempo passou e fiquei mais velho, vindo a presenciar incongruências e até situações absurdas e de extrema ingratidão entre meus pais e que acabaram levando minha mãe a tentar o suicídio, tomando uma quase overdose de calmantes. É importante falar sobre isso, pois essa foi a facada derradeira, que me distanciou de vez de meu pai. A partir deste acontecimento, uma traição sem razão, logo após ele mesmo ter passado por uma depressão avassaladora, onde minha mãe tinha sido heroicamente o pilar de tudo, já que ele estava praticamente ausente, sem a menor possibilidade de conduzir a família. Depois de tudo que minha mãe suportou e fez por nós e, principalmente, por ele, a atitude inesperada e ingrata da traição foi o veneno pior, da qual uma família dificilmente consegue sobreviver. Apesar de a família seguir em frente, jamais foi a mesma e as relações esfriaram ainda mais. A conveniência social impediu que se desse o golpe de misericórdia. Depois disso, minha mãe entrou num quadro de saúde cada vez mais decadente, que acabou culminando numa série de acidentes vasculares cerebrais e, consequentemente, sua morte anos mais tarde. Essa morte foi o corte definitivo nas ligações que ainda poderiam existir entre ele e eu. Ela ter morrido foi um grande alívio para mim, pois jamais fui de grandes demonstrações emotivas, mas, por dentro, eu sofria demais em vê-la do jeito que estava ano após ano, em decadência contínua e cada vez mais mergulhada demência, que a meu ver, era física, enquanto lá dentro o espírito sofria omo numa masmorra. Eu via isso. Eu sentia isso. E a impossibilidade de mudar este quadro, de ajudá-la de alguma forma, sempre me obsediava impiedosamente.

Não morávamos mais juntos nesta época e eu seguia uma caminho totalmente diferente de antes, acentuando ainda mais a distância. E como ele nunca foi de falar muito comigo, esquecendo inclusive o dia de meu aniversário, entre outras coisas, o silêncio tornou-se uma muralha raras vezes vencida por alguma ocasião, que jamais pude chamar prazerosa.

Antes sentia-me culpado, afinal era meu pai, mas, com o tempo, o desapego foi eliminando a culpa. Afinal, somos seres em experiência própria e insubstituível, onde os passos na estrada são marcados pela solidão. Compartilhar este caminho, em alguns momentos - longos ou curtos - com algumas pessoas jamais será compartilhar a experiência interna e eu fui aprendendo isso aos poucos, quando decidi que não iria mais ficar lamentando decisões e situações passadas, que serviram apenas para  aprendizado e crescimento. Elas não existiram para que erigíssemos totens ou estátuas eternas a nos assombrarem com um passado insistentemente presente. Somos todos peregrinos de nós próprios e a forma como trilhamos este caminho, como absorvemos o (auto)conhecimento e como o utilizamos nas relações com as outras pessoas é que definirá o que nos esperará no próximo porto.

Que ele siga seu próprio caminho.


19 novembro, 2019

Primeiras Linhas de um Aviso Inicial

Eu poderia discursar sobre as razões que me trazem aqui e dar inúmeros motivos idiotas para te convencer, mas isso realmente não é importante. O fato é que estou aqui, nesta posição um pouco incômoda, mas que já foi muito mais incômoda do que agora, porque eu simplesmente parei de me preocupar tanto. Percebi, enfim, que fatos são fatos e de nada adianta ficar me preocupando em demasia quanto ao que está acontecendo e ao que pode acontecer no futuro; um futuro que é uma quimera, até que o presente se movimente em alguma direção.

Cheguei aqui por 'acaso' - se é que isso existe - há dois anos. Estranhamente, fui abordado numa lanchonete. Fui pego de surpresa com a proposta e com a escolha do local onde vieram fazê-la, mas depois compreendi a necessidade de um local público; uma boa forma de evitar uma reação indesejada de minha parte.

Eles chegaram e me 'convidaram' a fazer parte de um projeto governamental sigiloso, mas que, até então, não poderiam revelar. É óbvio que achei estranho e até mesmo ri da proposta, mas depois tive que enfiar minha viola no saco, porque os sujeitos estavam mesmo falando a verdade e o tal projeto realmente existia. 

Eles me conheciam muito bem. Não só desfilaram todo meu currículo acadêmico, como também meus costumes diários, o que me deixou bem assustado, pois disseram coisas que somente eu sabia, coisas como: que lado da boca eu escovo os dentes primeiro. Parece ridículo, eu sei, mas era este tipo de meticulosidade de conhecimentos que eles tinham a meu respeito. Já estavam me observando faz tempo, pensando em 'recrutar-me' para o trabalho que faço hoje.

Por que resolvi falar sobre isso abertamente? Bem, estou doente e sem chance de cura. Não que ela, a cura, não exista, ela existe, mas vários eventos me trouxeram à posição em que estou agora e, digamos, essa doença foi resultado de algumas desavenças e desagrados, que nasceram e culminaram a partir do momento em que resolvi discordar de certos 'valores'. A cura? Bem, está exatamente em poder de quem não é muito simpático às minhas opiniões. Como não há muita esperança de que me façam uma bondade, resolvi golpear fundo, expondo o que sei, ou pelo menos, parte considerável do que sei a respeito do que andam fazendo, já há muitos anos e pelas costas de gente como você. O assunto é delicado e merece um cuidado especial com as palavras, para que não pareça uma coisa de maluco, muito embora isso acabe acontecendo de alguma forma, pelo menos no início do relato.

Bom, vamos deixar de enrolação e passar logo aos fatos que me trouxeram até este momento derradeiro de minha vida, mas que - quem sabe? - não pode ser um divisor de águas na política de acobertamento de segredos tão assustadoramente importantes para o futuro da humanidade, tirando-a deste obscuro abismo que 'eles' cismam em manter a todos. Está na hora de todos saberem o que está acontecendo e, talvez, tomar as rédeas desta loucura. Mas nunca é demais deixar de salientar que esta mudança não virá pacificamente e, sangue e vidas se perderão em meio a esta reviravolta, que só pessoas como você podem pôr em marcha, para seu próprio bem e de toda a humanidade neste planeta.

09 outubro, 2019

A História Original de A PEQUENA SEREIA


A versão de A Pequena Sereia que todos nós conhecemos tem um final muito feliz. Ela foi adaptada pelos estúdios Disney em 1985 e conta a história de amor entre a sereia Ariel e o príncipe Eric, terminando com os dois vivendo felizes para sempre. No entanto, o conto original, escrito pelo dinamarquês Hans Christian Andersen, não termina nada bem para a jovem sereia. Segundo se afirma, o autor escrevera a história baseado no amor não correspondido por outro homem.

A Verdadeira Origem do Conto

Na história criada por Andersen, a sereia salva o príncipe de um afogamento e acaba se apaixonando por ele. No entanto, sua natureza de sereia os impede de viverem juntos e felizes. Então, ela recorre à bruxa do mar, que lhe concede pernas e em troca recebe sua bela voz como pagamento. No entanto, o encantamento tem um porém: caso não seja correspondida, ela morreria dissolvendo-se na água do mar até desaparecer completamente. Dito e feito! O final acaba sendo inesperadamente trágico, pois o príncipe escolhe se casar com outra princesa. Com o coração partido, a pequena sereia vê seu destino ser tragicamente selado. 

Em 1837, quando da criação da história e da personagem, Andersen buscava representar seu fracasso na conquista de um heterossexual chamado Edvard Collin. Os biógrafos de Andersen afirmam que ele era bissexual e, totalmente arrasado, após seu amado decidir se casar com uma mulher, decidiu escrever o conto, como um recado para o amigo.

Um uma carta que escreveu para Collin, dizia: "A feminilidade da minha natureza e a nossa amizade devem permanecer um mistério". Mas, infelizmente, não era correspondido. O próprio Collin escrevera em suas memórias: "Eu me encontrei incapaz de responder a esse amor, e isso causou muito sofrimento ao autor".

Andersen parecia ansiar por fazer parte do mundo de Collin, da mesma forma que sua personagem.  O crítico de história literária e cultural Rictor Norton e autor de Meu Querido Garoto: Cartas de amor gays ao longo dos séculos, afirmou: “no conto de fadas escrito para Collin, Andersen se apresenta como o forasteiro sexual que perdeu seu príncipe para outro”.

No entanto, Andersen teve diversos reveses amorosos, onde teria se apaixonado por muitas mulheres que considerava inatingíveis e, segundo registros pessoais, sua vida sexual não era nada ativa. Talvez, seus outros contos também revelem seus conflitos de amor.

A Verdadeira História de CINDERELA

Muitos estão familiarizados com a narrativa apresentada nos filmes da Disney, no entanto, a história da princesa do sapatinho de cristal tem registros de 860 anos a.C e tratam de assuntos trágicos.


Por Fábio Previdelli 

A história da Cinderela é um conto popular que se tornou famoso no mundo todo devido ao grande sucesso que teve após adaptações feitas pela Disney. No entanto, a animação de 1950 e o live action de 2015 contam uma história muito mais amena e social do que suas versões primitivas, que tratam de assuntos como assassinatos e mutilação.

A alternativa mais antiga que se tem registro é a narrativa chinesa de Ye Xian, datada do ano 860 a.C. Além dela, outras que se tornaram mais conhecidas são a apresentada pelos Irmãos Grimm e por Giambattista Basile.

Confira abaixo alguma das versões mais antigas e mais sangrentas da princesa do sapatinho de cristal.

Rhodopis

A versão oral mais antiga que se tem conhecimento na Europa é a história grega de Rhodopis, uma cortesã grega que viveu na colônia de Naucratis, Egito. A história foi registrada pela primeira vez pelo geógrafo e filósofo grego Estrabão.

Segundo o conto, uma águia pegou um par de sandálias de uma empregada e as levou até Mênfis, no Egito. Chegando lá, o animal soltou o calçado no colo de um rei, que ficou extasiado tanto pela bela forma das sandálias quanto pela estranheza da ocorrência. Assim, enviou seus homens em todas as direções do país em busca da dona do calçado. Quando ela foi encontrada, o rei se casou com ela.

La Fresne

Essa versão do século 12 d.C, escrita por Maria da França, narra a história de uma mulher nobre que abandona uma de suas filhas recém-nascidas. A motivação do desamparo se dá pela crença da época que dizia que uma mulher que engravidava de gêmeos seria infiel, já que eles seriam oriundos de pais diferentes.

Sendo assim, ela deixa uma de suas filhas do lado de fora de uma abadia. O bebê é encontrado por um porteiro que a entrega a uma gentil abadessa. A menina recebe o apelido de Le Fresne e, quando adulta, se apaixona por um nobre cavaleiro.

A união é vista como impossível, já que ele tem que manter uma relação com alguém da nobreza e se casar com uma qualquer significaria o fim de sua linhagem. O nobre acaba sendo convencido a se casar com outra mulher, que, por ventura, é a irmã gêmea de Le Fresne. A ligação das duas é revelada no dia do matrimônio, que é interrompido para que ele se case com quem realmente ama.

Ye Xian

A versão asiática é datada por volta de 860 a.C. Nela, Ye Xian é filha de um líder tribal local que morreu quando ela ainda era muito jovem. Como sua mãe faleceu ainda mais cedo, seu pai acabou se casando com outra mulher, a qual ficou incumbida de cuidar de Ye Xian. Porém, ela é constantemente abusada e só encontra paz quando faz amizade com um peixe, que é a reencarnação de sua mãe.

Sua madrasta e sua meia-irmã matam o animal, mas Ye Xian salva os ossos do bicho, do qual ela descobre que são mágicos. Assim, ele a ajuda a se vestir adequadamente para um festival local. Calçando um sapato dourado, ela é reconhecida por sua família adotiva, que a expulsa do festival.

No meio da confusão ela perde seu calçado, que é encontrado por um rei de uma ilha marítima. Ao procurar a dona do sapato, ele chega à casa de Ye Xiang e se apaixona por ela. Assim, o monarca a resgata de sua cruel madrasta e os dois se casam.     

A versão dos Irmãos Grimm e outras histórias sangrentas

Apesar das versões apresentadas serem muito semelhantes com aquelas que estamos acostumados a ouvir. Outras interpretações do conto são muito mais macabras e assustadoras. Um exemplo é a contada pelos Irmãos Grimm. Para eles, a história de Cinderela era muito mais sangrenta.

Nela, a gata borralheira plantou uma aveleira no túmulo da mãe e a regou com lágrimas. Na árvore morava um pássaro, que a cobriu de ouro para três dias de baile. No terceiro dia, o príncipe pegou o sapatinho da desconhecida.

Na hora de experimentar nas donzelas do reino, uma irmã de Cinderela cortou o dedo do pé e a outra o calcanhar. Claro, o sapatinho só serviu na dona. E, no dia do casamento, duas pombas perfuraram os olhos das irmãs.

Pode até parecer assustador, mas essa não é a única narrativa com um final escabroso. Em uma das histórias, a moça vira empregada para fugir do assédio sexual do pai. Em outra, a madrasta, tentando matar a enteada, joga uma de suas filhas na fogueira. Numa terceira, a madrasta deixa Cinderela sem comer, numa época em que a fome rondava as aldeias.

Há outra, registrada por Giambattista Basile na coletânea Pentameron, do início do século 17, em que o pai de Cinderela casa-se com uma mulher que a trata mal, quando ela queria que ele se casasse com a governanta. Cinderela, então, assassina a madrasta.


02 outubro, 2019

A Verdadeira História de A BELA ADORMECIDA

Sleeping Beauty, por Henry Meynell Rheam
A Bela Adormecida é um clássico conto de fadas cuja personagem principal é uma princesa, que é enfeitiçada por uma maléfica feiticeira por um dedo picado pelo fuso de um tear. (por vezes descrita como uma bruxa, ou como uma fada maligna) para cair num sono profundo, até que um príncipe encantado a desperte com um beijo provindo de um amor verdadeiro. É um dos contos mais famosos da humanidade atualmente.

Irmãos Grimm
A versão mais conhecida é a dos irmãos Grimm, publicada em 1812, na obra Contos de Grimm sob o título A Bela Adormecida (título original Dornröschen, "A Rosa dos Espinhos"[1]) [2]. Esta é considerada que tem como base tanto na versão Sol, Lua e Talia de Giambattista Basile, extraído de Pentamerone, a primeira versão a ser publicada na data de 1634[3], como na versão do escritor francês Charles Perrault publicada em 1697, no livro Contos da Mãe Ganso sob o título de A Bela Adormecida no Bosque[4], que por sua vez também se inspirou no conto de Basile.

Segundo o conto do Charles Perrault, a versão mais popular.

Na festa do primeiro aniversário da tão desejada filha dos soberanos de um reino encantado, foram convidadas sete fadas madrinhas, presenteando a criança com dádivas como a beleza, a inteligência, a riqueza, a bondade, etc.. No entanto, uma bruxa malvada ou fada malvada que fora negligenciada porque o rei tinha apenas sete pratos de ouro, interrompeu o evento e lançou-lhe como vingança uma maldição, cujo resultado seria a morte pelo picar do dedo num fuso quando a princesa atingisse a idade adulta. Porém, ainda restava o presente da sétima fada, que havia chegado atrasada. Assim sendo, esta suavizou o feitiço, transformando a maldição mortal da fada má num sono profundo, até o dia em que seria despertada pelo primeiro beijo de amor.

O rei proibiu imediatamente qualquer tipo de fiação em todo o reino, mas tudo foi em vão. Quando a princesa completou 16 anos, descobriu uma sala escondida numa torre do castelo onde encontrou uma velha a fiar. Curiosa com o fuso pediu-lhe para ensiná-la a usar a roca de fiar, picando-se nesse mesmo instante com o fuso. Sentiu então o grande sono que lhe foi destinado e, ao adormecer, todas as criaturas presentes no castelo adormeceram juntamente, sob um novo feitiço da 7ª fada piedosa. Com o passar do tempo, cresceu uma floresta de urzes em torno do castelo, isolando-o do mundo exterior e causando dor e morte a quem tentasse entrar, devido aos seus inúmeros espinhos. Assim, muitos príncipes morreram ou desistiram ao tentar encontrar a princesa, chamada de Bela Adormecida, cuja beleza era tão falada nas redondezas.

Após cem anos decorridos, um destemido príncipe enfrentou a floresta de espinhos, mesmo sabendo do perigo mortal, e finalmente conseguiu entrar no castelo. Quando encontrou a torre onde a princesa dormia, viu que era tão grande a sua beleza que se apaixonou e, não resistindo à tentação, deu-lhe um beijo que a despertou para a vida e, seguindo-se ao dela, o despertar de todos os habitantes do reino que continuaram suas vidas e afazeres de onde haviam parado há cem anos. Na versão de Grimm a história termina aqui, enquanto que na de Perrault segue com a continuação:

O príncipe e a bela princesa casaram-se secretamente e tiveram dois filhos: Aurora e Dia. Quando a mãe do príncipe (de descendência de ogres) soube disso ficou com vontade de comê-los, e ordenou a um caçador que os matasse e trouxesse, mas o caçador colocou animais no lugar onde deveria ter as crianças. A rainha, quando se apercebeu disso, enraivecida, mandou atirar as netas em um poço cheio de serpentes, cobras e víboras durante a ausência do príncipe, seu filho, que tinha ido caçar codornizes. Mas o príncipe chegou antes do tempo previsto, e a rainha, que já não podia fazer o planejado, cheia de ódio e medo ao filho, desequilibrou-se caindo dentro do poço onde morreu. A partir daí, a princesa e o príncipe "viveram felizes para sempre"!


Os nomes da princesa

Cada versão do conto tem um nome diferente desta personagem. Em Sol, Lua e Talia, ela tem o nome de Talia, cuja derivação provém da palavra grega Thaleia, que significa "o florescimento"[4].

Perrault, por sua vez, não lhe deu nome. Esta é simplesmente chamada como "a princesa", enquanto Aurora é o nome da filha da princesa. Porém Tchaikovsky transferiu o nome da filha para a mãe, sendo então Aurora o nome da princesa no filme da Disney.

Por fim, os Irmãos Grimm referem-se à princesa como a Bela Adormecida[5]. No idioma original é chamada, tal como no título, de Dornröschen, cuja tradução de dorn é espinho e de röschen é florzinha, diminutivo de flor. Algumas versões do conto traduzem o nome da princesa para Rosa do Espinheiro, Flor do Espinheiro ou Rosa de Urze, já que originalmente o reino no qual a princesa dorme é cercado por um extenso espinheiro, sendo a princesa então conhecida como "Rosa do Espinheiro" ou "Flor do Espinheiro".


As diferentes versões

No conto de Basile, a princesa Talia cai num sono profundo quando fica com um pedaço de linho encravado debaixo da unha. O rei, que já está casado, quando a descobre no castelo abandonado fica de tal maneira apaixonado que a violenta enquanto ela dorme. Apenas nove meses após esta visita que Talia acorda, altura em que dá à luz os dois infantes, o Sol e a Lua. Quando a rainha, esposa do rei, toma conhecimento da existência de Talia e dos seus dois bastardos, ordena imediatamente as suas condenações, porém esta acaba por morrer no próprio fogo que preparava para a princesa, deixando todos os restantes felizes para sempre. Resumindo , a princesa é estuprada por um rei e dá a luz a dois gêmeos. É acordada por um de seus filhos. Desta forma, ela acaba se casando com o rei, por mais que ele tenha abusado da garota enquanto estava adormecida.

Em Perrault, a princesa acorda quando um príncipe a descobre e, apaixonados, casam-se e criam um amor que tem como frutos uma filha chamada Aurora e um filho com o nome Dia. No entanto, o amado sai numa caçada, deixando a princesa e os seus filhos ao cuidado da sua mãe ciumenta, que até então não sabia da existência do casamento do filho. Esta é descendente de Ogres e as suas tendências canibais provocariam a morte destes três, se não fosse a compaixão de um cozinheiro, que engana a sua majestade com carnes de animais. Por fim, quando o seu filho chega e descobre as tentativas de destruir a sua família, a rainha suicida-se ao saltar para um tanque repleto de sapos, serpentes e víboras que tinha preparado para a princesa.

As segundas partes destas duas versões são consideradas por alguns folcloristas como contos distintos que foram unidos inicialmente por Basile.

A versão dos Irmãos Grimm termina logo após o encontro do príncipe. Assim foi criada uma integridade superior à dos contos anteriores que a tornou, em consequência, mais popular.

Em Ever After High, Briar Beauty é a filha da Bela Adormecida.


Filmes

A história também ficou muito conhecida através do filme produzido pela Disney em 1959, que conta uma história mais parecida com a versão dos Irmãos Grimm, apesar de possuir uma série de adaptações na história: Não são doze fadas que visitam o batizado da princesa, e sim três: Flora, Fauna e Primavera. No lugar de uma fada invejosa, retrata uma bruxa sombria chamada Malévola, que possui um castelo rodeado de trevas com seu próprio exército de monstros. Tanto as fadas quanto a bruxa permanecem presentes durante todo o filme. Além disso, o príncipe conhece a princesa assim que ela nasce, já que seus pais eram amigos dos pais dela e haviam decidido casamento entre seus filhos anteriormente. Outra mudança é que as três fadas querendo proteger a princesa recém-nascida, sequestram-na e levam-na para a floresta, onde criam-na disfarçadas de camponesas. A princesa sonha com o príncipe e só descobre que é filha do rei e da rainha ao completar dezesseis anos de idade, quando Malévola a atrai para um cômodo do castelo e a princesa fura o dedo no fuso de uma roca. Com a ajuda das fadas, o príncipe ainda derrota a própria Malévola transformada em dragão (que seria equivalente à mãe ogre das outras versões) e após beijar a princesa, o conto acaba com o casal dançando em vosso casamento e as três fadas indecisas sobre a cor do vestido da protagonista. Além disso, no filme a princesa é chamada de Aurora (assim como na versão de Tchaikovsky) e o príncipe de Filipe.

Em 2014 é lançado o filme Malévola, com inspiração no clássico de 1959 da Disney, narrado sob o ponto de vista da antagonista, a bruxa Malévola, encarnada por Angelina Jolie. Aqui conhecemos uma outra versão da história: Malévola costumava ser a mais poderosa protetora do Reino dos Moors, onde habitavam os seres fantásticos. Após sofrer por uma terrível traição do Rei Stefan, ela se vinga rogando uma maldição em sua filha, a Princesa Aurora. O que Malévola não contava é que desenvolveria um grande laço de afeto com Aurora, e consequentemente, arrepender-se-ia de sua própria maldição.


Televisão

No seriado Once Upon a Time há uma fusão entre as versões de Grimm, de Perrault e da Disney. Aurora é filha da Bela Adormecida e, assim como sua mãe, também sofre uma maldição do sono, dormindo um sono profundo na Floresta Encantada. O príncipe Philip, o amor verdadeiro da princesa, ajudado pela guerreira Mulan, a encontra e a desperta com o beijo de amor verdadeiro.


Referências

  1.  Por vezes também traduzido para inglês como Little Briar Rose, cuja tradução directa é O Pequeno Matagal de Rosas.
  2.  Contos de Grimm, vol.1, nº50
  3.  Giambattista Basile, Pentamerone, "Sun, Moon and Talia" Arquivado em 7 de junho de 2011, no Wayback Machine.
  4.  The Annotated Classic Fairy Tales (em inglês). [S.l.]: W. W. Norton & Company. 2002. ISBN 0-393-05163-3, pg.95.
  5.  Mal a beijou, a Bela Adormecida abriu os olhos, acordou e olhou-o com um ar doce. - Retirado de: Jacob e Wilhelm Grimm. Contos de Grimm. [S.l.]: Relógio D'Água. ISBN 972-708-392-7.
  6.  The Annotated Classic Fairy Tales (em inglês). [S.l.]: W. W. Norton & Company. 2002. ISBN 0-393-05163-3, pg.96.


Bibliografia

The Annotated Classic Fairy Tales (em inglês). [S.l.]: W. W. Norton & Company. 2002. ISBN 0-393-05163-3
Jacob e Wilhelm Grimm. Contos de Grimm. [S.l.]: Relógio D'Água. ISBN 972-708-392-7


24 agosto, 2019

PERDIDOS

Um vento forte açoitava o deserto, onde a visibilidade era praticamente nenhuma. Nuvens de areia varriam o ar de um lado para o outro impiedosamente. Não se podia saber se era noite ou dia, pois o ar carregado obscurecia tudo, deixando todo o local em penumbra.

Anne acordou tossindo, cuspindo a areia que entrara por suas narinas, enquanto sentia o chicotear insistente da nervosa nuvem, que parecia querer lhe arrancar a pele dos ossos. Puxou a camisa, cobrindo boca e nariz, numa tentativa de conseguir respirar direito. A camisa ajudou um pouco e Anne podia respirar sem se engasgar com a poeira, mas, ainda assim, dificultosamente. Tateou ao redor e sentiu algo. Foi tateando e apalpando e percebeu que era um braço. Puxou com muito esforço para junto de si a pessoa que parecia estar meio enterrada na areia. Sentia que era Jota. Sabia que ele estava vivo, muito embora não esboçasse qualquer reação.

De repente, aquele corpo soltou um gemido, que Anne não teve certeza de ter realmente escutado, pois o barulho ensurdecedor da tempestade de areia zunia insistentemente e abafava qualquer outro som. 

Anne puxou a camisa de Jota, colocando-a sobre seu rosto, da mesma forma que fizera consigo. A diferença é que se preocupou em cobrir-lhe também os olhos, pois sabia que ele poderia ter o impulso de abri-los e a areia poderia machucá-los seriamente.

A tempestade parecia que não acabaria e Anne esforçava-se para pôr-se de pé e caminhar, arrastando Jota consigo, mas tudo era mais difícil ali, no meio de toda aquela areia impiedosa. Anne caía a todo momento, mas tinha certeza que se permanecessem ali, seriam os dois enterrados vivos. Era preciso continuar andando. 

Alguns poucos metros pareciam centenas, tamanho era o esforço. Até que simplesmente não tinha mais forças para seguir em frente, ou ficavam ali ao sabor da sorte, ou tentava seguir sozinha, sem Jota e isso ela não faria de forma alguma.

Anne desanimava e se desesperava. Não tinha nem mais forças para chorar. Suas lágrimas, que audaciosamente desciam de seus olhos, simplesmente eram consumidas pela areia feroz. Abraçou Jota com o resto de forças que tinha, procurando protegê-lo da melhor forma que pudesse, enquanto buscava esconder seu próprio rosto, cuja camisa lhe escapava a todo instante.

Foi em meio a essa desesperada luta que parecia inútil, que algo pareceu se mover através da areia. Entrecortados por jatos mais ou menos intensos, algumas sombras vinham lentamente na direção de Anne. Aos poucos os vultos foram tomando forma e logo se revelaram alguns homens muito bem protegidos por mantos, que faziam sinais uns para os outros. Um deles tentou pegar Jota, mas Anne interveio surpresa, sem saber o que estava acontecendo. Todos pararam onde estavam e Anne escutou em sua mente:

– Paz! Amigo… nós amigo… nós ajuda.

Anne sentiu uma confiança enorme abraçar seu coração. Era uma certeza e uma leveza que, ao mesmo tempo que a deixava à vontade, também lhe dava segurança e alívio. Não sabia quem eram, mas sentia que diziam a verdade. Estava exausta e diante da segurança que os homens transmitiam, Anne deixou-se relaxar. Meneando a cabeça, perdeu os sentidos.

Os homens os abraçaram, os enrolaram em mantos e, pondo-os no colo, os levaram através da areia ondulante, que voava de um lado para o outro. Logo, viam-se apenas os vultos atravessando a tempestade, até sumirem de vez no turbilhão de areia.

Trecho de 

21 fevereiro, 2019

O Início do Despertar

Andava entre as sombras das folhas e das inúmeras dores do caminho, muitas vezes indiferente ao que se passava ao seu redor, porquanto estava fixado em seu objetivo. Mas a insistência do tempo trouxe a insegurança, o sutil esmorecimento de sua concentração, e seu olhar abriu-se para o mundo que o rodeava ao longo do caminho.

A óbvia e constante manifestação da natureza em flores, ervas e insetos falou-lhe em primeiro plano, seguida da humanidade despertante em seu coração, diante da presença, cada vez mais notada, de seus pares em sua vidas particulares; mesclas aparentemente descompensadas de sofrimento e alegria, que o deixou confuso e respeito de si próprio, pois inevitavelmente espelhara-se e vira-se em situação semelhante.

Este foi o princípio do despertar da sabedoria e a evidência da gestação do sábio que viria a nascer muito em breve; não sem as naturais dores do parto.


04 outubro, 2018

Memórias de Um Velho Futuro 2

Lembro da neve carregada pelo falante vento, quando o inverno batia a nossa porta, trazendo além do frio, uma poesia estranha, que emaranhada nos pequenos cristais, cintilava seus versos em nossas vidas. Era uma trilha estranha a musicar um tempo que não parecia tempo. Olhávamos pela janela e qualquer instante perpetuava-se, sem que pudéssemos saber quanto tempo realmente passara nesta contemplação. Fazíamos nosso próprio tempo e mundo era nossa pequena casa, numa rua que acabava na entrada da floresta; prelúdio da montanha sagrada de nossos sonhos de uma vida, de nossas fantasias infantis decoradas de lendas e histórias, que tomávamos como verdades absolutas e desejávamos fazer parte.

O tempo passou, apesar de nunca nos importarmos com ele. A sagrada montanha coberta com seu manto de neve quase eterno permanece lá fora, como se nos observasse em sua imortalidade aparente. A rua não parece a mesma de antes. Hoje está cheia de pequenas casas modernas, de linhas arrojadas e sem poesia alguma. Triste. Apenas nossa casa permanece tal qual como sempre fora. Importunaram-nos anos seguidos com o futuro e sua insistência em tentar apagar de nossas lembranças a poesia das formas. Relutamos o quanto pudemos e fomos fortes o bastante, para que, finalmente, nos deixassem em paz. Então, assim preservamos não só a história, mas a poesia que poucos têm olhos para ver. 

Tristes tempos estes, onde tudo parece preceder até mesmo o imediatismo. Máquinas substituem todos os trabalhos pesados e os homens apenas se divertem. Talvez alguns valores tenham se perdido entre peças, engrenagens e mudanças. Mas quem realmente se importa? São pessoas deste tempo, cuja razão tão diferenciada burla a si mesma entre distrações e constante prazer. Os rostos que pareciam alegres, apesar das dificuldades e agruras até certo ponto, necessárias, agora parecem máscaras tão frias quanto as máscaras dos robôs que circulam agora por avenidas, em suas formas humanizadas e sua pele de uma mistura artificial de látex com outras tantas coisas que não fazem parte de minha instrução.

Eva me traz uma caneca de chocolate quente. Sinto o cheiro antes mesmo de ela entrar na sala. Tem sido difícil conseguir chocolate de verdade, depois das regras restritivas de saúde, onde apenas frutas são o que de natural permanecem sendo primordial à alimentação. Já não é correto alimentar-se de coisas condimentadas, posto que se saiba hoje, o mal que fazem ao perfeito funcionamento do organismo humano. Ah! Mais com os Diabos! Um chocolate quente não há de fazer tão mal, que não se possa degustá-lo nos dias frios. O radicalismo alimentar matou boa parte dos prazeres que a vida nos oferecia. É claro que existem alternativas artificiais, hoje perfeitamente seguras e que vem substituir os produtos condimentados cheios de conservantes, mas para mim, homem de tempos poéticos e românticos, estas coisas são apenas papel com sabor. 

É, eu sei. Pareço ridículo. Sinto-me ridículo, a bem-dizer da verdade. Mas sou um homem de opinião. Não gosto de ser tratado como gado. 

Está certo. No fundo também não passo de um radical, como qualquer outro “moderninho”. É verdade. Reluto à modernização da sociedade. Mas fazer o que? O progresso é inexorável e tenho que me acostumar.

Pobre Eva. Sempre suportando minhas reclamações silenciosas com um lindo sorriso, que me faz sentir-me novamente uma criança tola. O último herói da resistência à coisa nenhuma. Um pobre bobão que não tem mais do que reclamar e fica buscando colocar chifres em cabeça cavalo. A verdade é que luto contra mim próprio. Sou um ser humano complexo e cheio de birra com coisa nenhuma e com tudo ao mesmo tempo.

Sorvo um pequeno gole do chocolate e respiro fundo. O calor desce pelo peito e, como num passe de mágica, espalha-se por todo o corpo. Adoro chocolate quente.

Tomo mais um gole e resolvo descer para o laboratório. Preciso voltar a desenvolver o novo processador de singularidade quântica. Sinto que não estou longe de descobrir a camada de identificação de vetores de espaço-tempo. Talvez mais alguns ajustes e consiga encontrar a mim mesmo no final da esquina.

Dou uma tímida gargalhada ao pensar que, apesar de toda minha postura ranzinza e minha birra, sou um cientista que todos consideram brilhante e que está a ponto de revolucionar o meio de transporte não só na Terra, mas para outros rincões do universo. Paradoxal. Mas enfim, não faço o tipo estereótipo do cientista. Eu acho...


Memórias de Um Velho Futuro

Por quantos anos os sonhos perduraram, atravessando desafiadoramente nuvens e hálitos de dias funestos? Quantas palavras, dissertações e silenciosos olhares eternizaram a perfeita cumplicidade inigualável e absoluta? Quantos desejos não foram apaziguados na cama perfeita, nas luzes de dias perfeitos, na companhia simples e perfeita? 

Os anos passam rápidos e, de repente, abrimos os olhos e mais nada parece como antes, como se o tempo voasse além de nosso alcance no ínfimo fechar e abrir de pálpebras. E a inevitável certeza do agora que logo passa, é o que resta para nos trazer de volta a solidão imposta, como se a felicidade tivesse que ser compensada com o isolamento de tudo quanto foi o mais importante.

A despedida não é algo fácil, mas a aceitação de seguir em frente é a pior dor de todas, quando se segue então sozinho.

Faz dez anos que ela se foi e, ainda assim, permanece a dificuldade de aceitar o eco de sua voz, como um suspiro sutil, que parece passear por todos os cômodos da velha casa, explorando possibilidades de trazer de volta o passado, quando em realidade é apenas um reflexo de lembrança que escapa à sanidade e resvala pela mente distraída, dando a impressão da atemporalidade, como se nada tivesse mudado, fazendo-nos esquecer a realidade presente e reviver o amor tão vivaz quanto a realidade do passado que se foi.

A casa já não tem a vivacidade de antes. Os móveis continuam nos mesmos lugares, mas já não se tem forças para subir as velhas escadas em caracol, que leva até a suíte de tantos sonhos, tantos momentos inesquecíveis. Melhor assim. Já é bastante difícil conviver com as muitas lembranças que o resto da casa amotina-se contra mim. 

O tempo passou e muita coisa mudou nestes dez anos. O velho carro continua na garagem, sem utilidade. Um bibelô, uma lembrança dos tempos de motores a explosão e a necessidade de veículos para se transportar de um lugar a outro. Os tempos são outros. As ruas são dos pedestres que vejo através das vidraças empoeiradas, quando me animo a olhar para o mundo lá fora. Com o advento dos portais interdimensionais, qualquer outro meio de transporte ficara obsoleto. Apenas eu permaneço aqui, isolado do presente, numa vã tentativa de perpetuar o passado, em nome de um amor que teima em não morrer. Talvez só minha morte possa devorar a ânsia inesgotável deste sentimento que perdura, que insiste em me acompanhar. Oh! Como leviano me tornei. Rio de minhas próprias lamentações, quando meu único desejo é manter esta chama dentro de mim indefinidamente, posto que sua luz ilumina o que me resta de sã consciência. Como me fazes falta, minha querida...


20 janeiro, 2018

Encontro com um Avatar


   Anne vai subindo e entrando por entre as montanhas. Olha para as escarpas ao redor e sente receio. Isso gera um sentimento cada vez maior de insegurança e ela começa a sentir-se cansada. 

   Por entre as sombras da montanha algo se movimenta, à princípio furtivamente, porém, em seguida avança em sua direção na forma de seres nebulosos e monstruosos. Anne entra em pânico e, aproveitando-se do momento, um dos seres empunhando um estranho arco e flecha, dispara um seta veloz que atinge,  como um ferrão, o ombro direito da menina. Anne berra de dor e curva-se sobre o chão rochoso. Outros seres aproximam-se sedentos. Subitamente, uma luz irrompe em meio às sombras e os seres afastam-se, mas sem deixar o local. Observam visivelmente incomodados pela luz, enquanto soltam impropérios. No centro da luz surge uma forma translúcida, uma forma de uma grande árvore, no centro da qual começa a surgir um vulto que vai lentamente tomando a forma de um ser humano sentado na posição de lótus. O ser levanta-se calmamente e vem caminhando. 

   Anne observa o ser, porém além da dor insuportável, começa a sentir-se tremendamente fraca, dominada por confusão mental que a impede de raciocinar claramente. Em seu rosto, diversas artérias enegrecidas espalham-se cada vez mais numerosas, indo em direção a seus olhos partindo do ferimento, onde a flecha permanece cravada.

   O ser aproxima-se mais e revela-se um belo e jovem homem vestido com um suave manto dourado e os longos cabelos arranjados e presos no alto da cabeça. Sua fisionomia indochinesa é de uma serenidade profundamente reconfortante. Apesar de sua aura envolvente, ela não consegue mais discernir as coisas. O homem abaixa-se lentamente próximo de Anne, tocando com sua destra a flecha enegrecida. No mesmo instante, a seta se desfaz no ar em milhares de partículas, que vão se incendiando e desaparecendo, até nada mais restar. O horrendo e enegrecido ferimento do ombro de Anne permanece pulsante como uma criatura viva que vai alastrando-se por todo o corpo da menina. O homem toca o centro do ferimento e uma luz arroxeada cintila ao toque, tomando a forma de uma flor de lótus que, girando suavemente, vai esvanecendo até desaparecer. Em seu lugar, o ombro da menina está curado, como se nada o tivesse magoado antes. As artérias enegrecidas que cobrem o rosto de Anne começam a dissipar-se e um líquido viscoso, que parece ter vida, começa a sair por seus ouvidos, atirando-se no solo rochoso e desaparecendo entre os fragmentos de rocha, buscando esconderijo nas profundezas sombrias. 
   Anne sente-se exausta, mas o homem a ampara colocando a mão em seu ombro e olhando em seus olhos. Anne retribui o olhar.

- Maya.

   Anne escuta, sem entender a palavra que sai suavemente dos lábios quase imóveis do homem. Maya? Meu nome é Anne, pensa.

- Maya é a ilusão. Se sua mente é impura, sua terra será impura. Se sua mente é pura, sua terra será pura. O desejo é como um rei impiedoso, que nunca está satisfeito e que impera em seu coração. Não deseje e não sofra. O desejo é a alma do sofrer. Mantenha-se firme em seu propósito, porém flexível como árvores ao vento. Sua determinação é admirável, mas sua rigidez a enfraquece diante do vento dos acontecimentos. E isso te torna presa fácil do mundo de Maya.

   Anne escuta e tenta entender. Com certeza aquele era mais um ensinamento valioso como tantos outros que vinha recebendo, mas como seria possível pôr em prática aquilo? Como viver sem desejar algo? Como ser firme e flexível? Não parecia fazer sentido algum.

- Sua tarefa é descobrir o seu trabalho e, então, com todo o coração, dedicar-se a ele. Tudo o mais são ilusões para desviá-la de seu caminho. São obras de Maya. Tudo o que é passageiro é uma ilusão que nos vem incomodar. Seu coração está mergulhado na impureza, pois há ódio escondido nele e que você mesma desconhece. O ódio é como uma pedra quente que temos a intenção de atirar em alguém. Porém, é sempre aquele que levanta a pedra quem se queima primeiro. Há muitas queimaduras do passado, mas elas são exatamente isso, apenas passado. Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos fazemos o mundo.  Tudo tem seu tempo no não-tempo. Observe. Apenas observe e siga em frente.
- Mas como...?
- A paz só pode ser encontrada dentro de você mesma. Não adianta procurá-la incansavelmente à sua volta, pois estará fadada ao fracasso. – Ele sorri amorosamente. – Só há um tempo em que é fundamental despertar. Esse tempo é agora. 

   Dizendo isso, ele toca a testa de Anne suavemente com a ponta de seu indicador e um brilho intenso espoca na consciência de Anne, iluminando tudo. 
    Ela não ouve nada, não vê nada, além de luz. Luz por todos os lados. Permanece assim por algum tempo, sem saber precisar o quanto, pois não há tempo nem espaço. Seu ser amplia-se tocando em tudo, mesclando-se a tudo sem deixar de ser ela mesma. Está imersa em profunda paz. Todo o universo passa a fazer sentido. Tudo é muito simples. Tão simples como as pessoas jamais imaginaram ser possível. Anne percebe o quanto as pessoas dificultam tudo tornando complexo e difícil o mundo, o universo, a vida. Todas as coisas são passageiras, ela sabe. E não está separada de nada. O universo é um só, onde Deus, deuses, seres e mais seres são partes de uma só coisa, uma só imensidão de paz e luz.
   De repente, ela abre os olhos e está novamente na silenciosa sala. Em sua frente, Helena sorri com os olhos marejados de lágrimas. Anne não compreende bem a situação. 

- Minha querida. Não tens a menor idéia de quem esteve contigo, não é?

   Anne faz que não entende.

- Só tive esta oportunidade muitos anos depois de iniciar meus estudos com os mestres do oriente. Você, em tão poucos meses, já recebeu a visita de um grande mestre.
- Mestre? O homem bom de manto dourado, que disse coisas profundas?
- Sim. Não sabes quem era ele? Nem imaginas?

   Anne, despreocupadamente, porém interessada, faz que não com a cabeça.

- Oh, querida! Já vens estudando algumas coisas sobre o budismo. Estiveste com Sidarta Gautama, um dos Budas. Poucos um dia conseguiram estar com ele em suas meditações. Estamos praticando há apenas alguns meses e você já teve a oportunidade de encontrá-lo no mundo espiritual. Acabaste de receber um grande presente.

   Anne tenta entender a dimensão do que Helena estava dizendo, da importância de tal encontro, mas era muito difícil para alguém que soubera da existência de Buda apenas por breves citações em alguns livros da estante da sala de tia Rita e das imagens gordinhas e sentadinhas de pernas cruzadas e que nada pareciam com o homem que ela acabara de conhecer. Fora isso, não tinha mais qualquer referência sobre o Buda.

- Anne, sei que ele te passou alguns ensinamentos.
- Sim.
- Pois medite sobre eles. No momento, podem parecer difíceis e, até mesmo, sem sentido mas, com o tempo e a meditação continuada, você começará a acessar egrégoras de forma pensamento mais elevadas e tudo começará a clarear. Tenha paciência e aplique-se com esmero aos estudos. Disciplina é a base de tudo. A partir de agora, além das poucas citações a que teve acesso dentro dos ensinamentos budistas, você acrescentará a teus estudos, a filosofia budista em sua essência primordial e sem os desvirtuamentos tão comuns às tantas vertentes que se seguiram com o passar das dezenas de séculos. Somente aqui em Shambala é possível tomar contato com a pureza dos ensinamentos de Sidarta.
- Sim, D. Helena. Eu vou me esforçar cada vez mais. E sempre me interessei por tudo que tenho aprendido. Tenho certeza de que vou gostar muito de aprender sobre o budismo.
- Por favor, querida, desde que chegou aqui, que quero te dizer isso: chame-me apenas de Helena. - Diz, abrindo um grande e terno sorriso.

   Anne sorri e faz que sim com a cabeça. No peito ainda sentia a sensação de paz daquele lugar para onde Sidarta a enviara. Mas será que ele a enviara mesmo para algum lugar? – Pensava. Talvez, segundo o que ele disse sobre a paz estar dentro de nós mesmos, ele só tivesse mostrado algo que estava dentro dela mesma, sem que ela nunca tivesse se dado conta disso. Enquanto pensava sobre isso, deu-se conta de que algo estava diferente. Resolveu calar o raciocínio e apenas sentir. Fechou os olhos e deixou a respiração tranquila. Em poucos instantes, abriu um sorriso. Meu Deus! – Pensou. Nada! Não há nada! – Disse para si mesma. Sim. Sua mente estava quieta. Não havia mais pensamentos pulando feito macaquinhos de um lado para o outro, impedindo-a de concentrar-se. Tudo estava silencioso em sua mente, quando ela calava o raciocínio ordinário. Agora, sim. Ela tinha certeza de que as coisas começariam a dar certo.
   Helena levantou-se sorrindo, entendendo os pensamentos animados de Anne e orgulhosa do progresso rápido de sua pupila. 

- Observe. Mesmo quando chegas à conclusão de que há o vazio, acabaste de preenche-lo com a o raciocínio desta certeza. – Helena piscou um dos olhos, enquanto sorria. Anne também sorriu, entendendo perfeitamente as artimanhas de sua própria mente. O Nirvana não seria atingido tão facilmente, soube.

  Anne seguiu sua mestra e Helena a convidou para um passeio pela cidade. As duas cruzaram os imensos umbrais dourados da sala, fechando a porta atrás de si.

Trecho de 'Anne Blind entre Luz & Trevas'
Em breve nas melhores livrarias.

11 novembro, 2016

Um pedacinho do livro que estou escrevendo...

Primeiras lembranças...

Por quantos anos os sonhos perduraram, atravessando desafiadoramente nuvens e hálitos de dias funestos? Quantas palavras, dissertações e silenciosos olhares eternizaram a perfeita cumplicidade inigualável e absoluta? Quantos desejos não foram apaziguados na cama perfeita, nas luzes de dias perfeitos, na companhia simples e perfeita? 

Os anos passam rápidos e, de repente, abrimos os olhos e mais nada parece como antes, como se o tempo voasse além de nosso alcance no ínfimo fechar e abrir de pálpebras. E a inevitável certeza do agora que logo passa, é o que resta para nos trazer de volta a solidão imposta, como se a felicidade tivesse que ser compensada com o isolamento de tudo quanto foi o mais importante.

A despedida não é algo fácil, mas a aceitação de seguir em frente é a pior dor de todas, quando se segue então sozinho.

Faz dez anos que ela se foi e, ainda assim, permanece a dificuldade de aceitar o eco de sua voz, como um suspiro sutil, que parece passear por todos os cômodos da velha casa, explorando possibilidades de trazer de volta o passado, quando em realidade é apenas um reflexo de lembrança que escapa à sanidade e resvala pela mente distraída, dando a impressão da atemporalidade, como se nada tivesse mudado, fazendo-nos esquecer a realidade presente e reviver o amor tão vivaz quanto a realidade do passado que se foi.

A casa já não tem a vivacidade de antes. Os móveis continuam nos mesmos lugares, mas já não se tem forças para subir as velhas escadas em caracol, que leva até a suíte de tantos sonhos, tantos momentos inesquecíveis. Melhor assim. Já é bastante difícil conviver com as muitas lembranças que o resto da casa amotina-se contra mim. 

O tempo passou e muita coisa mudou nestes dez anos. O velho carro continua na garagem, sem utilidade. Um bibelô, uma lembrança dos tempos de motores a explosão e a necessidade de veículos para se transportar de um lugar a outro. Os tempos são outros. As ruas são dos pedestres que vejo através das vidraças empoeiradas, quando me animo a olhar para o mundo lá fora. Os meios de transporte usuais ficaram obsoletos. Apenas eu permaneço aqui, isolado do presente, numa vã tentativa de perpetuar o passado, em nome de um amor que teima em não morrer. Talvez só minha morte possa devorar a ânsia inesgotável deste sentimento que perdura, que insiste em me acompanhar. Oh! Como leviano me tornei. Rio de minhas próprias lamentações, quando meu único desejo é manter esta chama dentro de mim indefinidamente, posto que sua luz ilumina o que me resta de sã consciência. 

Como me fazes falta, minha querida...


01 julho, 2016

Neil Gaiman - "Faça Boa Arte!"


Em 2012, Neil “Sandman” Gaiman fez um belo discurso para os formandos da Universidade de Artes da Filadélfia, que logo foi postado na internet e se espalhou, inspirando muitos jovens artistas.

Os conceitos de arte, sonhos, bravura e a luta que os artistas devem travar, segundo Gaiman, devem sempre ser inspirados pelo objetivo de fazer “boa arte”.

Assista ao discurso de Gaiman legendado.



O MAUSOLÉU


   O sol já não está tão quente. A distância não é tão grande, mas eu também não tenho pressa. Vou andando e percebendo os detalhes, sem necessariamente observá-los diretamente. É apenas ir confirmando tudo que sempre é como é. As mesmas pessoas, os mesmos afazeres, as mesmas vidas repetitivas, como engrenagens de uma gigantesca máquina aparentemente sem sentido, mas que continua funcionando, funcionando, funcionando sem parar. Algumas engrenagens quebram, mas, apesar da comoção, não devem ter grande significação, pois logo tudo volta ao normal, como se a grande máquina se adaptasse.
   A subida é sempre mais dura e, apesar da ausência de pressa, ainda assim, preciso me esforçar um pouco mais. Mesmo andando devagar, posso sentir a poeira entrando pelas minhas narinas e pela minha boca. É uma sensação desagradável o arranhar seco na garganta. 
   Paro um pouco para tossir. Maldita bronquite.
   Há uma brisa muito suave; uma pequena vantagem de se estar subindo.
   Observo mais uma vez o céu de profundo azul. Algumas nuvens soltas surgem no horizonte.
   Preciso continuar subindo. Então retomo a lenta caminhada. Pé ante pé.
   A brisa atenua um pouco a incômoda sensação de falta de ar.
   As casas vão rareando, à medida que subo.
  Alguns passarinhos de fim de tarde pululam entre galhos de algumas árvores na beira da estrada poeirenta. Talvez estejam questionando a razão do caminhante humano; talvez se perguntem o que há por trás da estranha calma; talvez não questionem nada e nem mesmo dão qualquer importância ao ente andante.
    A curva antes do fim é logo ali. Já começo a ver o topo dos portões que vão surgindo aos poucos. A curva parece o trecho mais íngreme e preciso fazer mais esforço para continuar no mesmo ritmo. Ou talvez seja alguma forma de resistência inconsciente; um último grito silencioso da consciência. Na verdade, não importa.
   Antes de abrir um dos portões, volto-me e dou mais uma olhada para a cidade lá embaixo. Uma tentativa de ver diferente, o que sempre foi o mesmo. Talvez pudesse ver agora, algo que me escapou por todos estes anos. Não. Nada. A mesma vista panorâmica de sempre.
   Suspiro entediado.
  Volto-me novamente, abro o portão e entro no cemitério. Vou andando pelas ruelas mal calçadas. Mas, também, quem se importaria com isso? Os residentes não se importam com nada.
  Lápides, cruzes, fotos amarelecidas, datas esquecidas... Ecos silenciosos de um passado qualquer nas entranhas imperscrutáveis do tempo.
   Já posso ver o mausoléu. Ninguém nunca vai lá.
   O sol está descendo.
   Chego à porta, tiro a velha chave do bolso e, colocando-a na fechadura, giro-a com dificuldade, até ouvir as engrenagens ruidosas e enferrujadas culminarem num estalo pesado e surdo. Empurro a porta que reclama, mas abre.
   Entro sem olhar para trás.
   Fecho a porta apoiando as costas no metal frio e centenário. Sou como a porta; sinto-me igualmente engolido por centenas de anos, que não tenho. Ou talvez tenha.
  O sol entra pelas grades das pequenas janelas, marcando e deslizando pelas paredes mórbidas do tempo.
   Fico um tempo ali, olhando o facho de sol.
  Dou alguns passos e deito-me sobre o túmulo de pedra no meio da sala. Despeço-me definitivamente da verticalidade, sem qualquer delicadeza verbal ou intencional.
   O sol toca meu rosto e deixo o brilho ofuscar-me nos seus últimos instantes.
   A escuridão se aproxima.
   Uma lágrima silenciosa e vazia desde de meu olho. Nada sinto e já não sei se penso sequer.
   Vai ficando escura e fria a pequena sala.
  Fecho finalmente os olhos e, quando a penumbra também se despede, restando apenas a total escuridão, tudo para. Não há mais tempo; não há mais espaço. E, finalmente, nada mais importa.
   Encerro, então, o derradeiro ato. Esqueço quem sou. Não há mais razão. Não há desejo. Apenas o nada.
   Sem dor, sem temor e sem desespero, simplesmente interrompo-me e abandono o ar que já não me serve.

Fim.

16 novembro, 2015

A Verdadeira História de ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS

Em algum momento de nossas vidas, todos tomamos contato com a história de Alice no País das Maravilhas, ou pelo menos partes da história, que foi transformada em um filme de desenho animado pela Disney em 1951, e que mais recentemente, em 2010, ganhou uma versão cinematográfica dirigida por Tim Burton. 

Embora a história da menina que se aventura pela toca do coelho e encontra um mundo desconhecido e enigmático seja muito conhecida, alguns fatos por trás da história são um tanto sombrios.


O livro

Alice's Adventures in Wonderland, frequentemente abreviado para Alice in Wonderland (Alice no País das Maravilhas) é a obra mais conhecida de Charles Lutwidge Dodgson, publicada a 4 de julho de 1865 sob o pseudônimo de Lewis Carroll. É uma das obras mais célebres do gênero literário nonsense.

O livro conta a história de uma menina chamada Alice que cai numa toca de coelho que a transporta para um lugar fantástico povoado por criaturas peculiares e antropomórficas, revelando uma lógica do absurdo e características dos sonhos. Este está repleto de alusões satíricas dirigidas tanto aos amigos como aos inimigos de Dodgson, de paródias a poemas populares infantis ingleses ensinados no século XIX e também de referências linguísticas e matemáticas frequentemente através de enigmas que contribuíram para a sua popularidade. É assim uma obra de difícil interpretação, pois contém dois livros num só texto: um para crianças e outro para adultos.


Este livro possui uma continuação Alice do Outro Lado do Espelho.


A origem da história

Charles Lutwidge Dodgson era um homem muito tímido, e gostava muito de crianças (apenas as do sexo feminino) e de lhes contar histórias. Lewis enquanto lecionava Matemática em Oxford conheceu Henry Liddell, pai de 3 meninas - Alice, Lorina e Edith. Ele acabou desenvolvendo uma amizade (será que era realmente amizade) pela menina Alice. Os pais da garota não viam problema nesse contato, algo que hoje em dia seria visto de outra forma – Dodgson tinha 31 anos, enquanto que Alice tinha apenas 7 anos de idade.

As irmãs Liddell

A 4 de 1862, durante um passeio de barco pelo rio Tâmisa, Charles Lutwidge Dodgson, na companhia do seu amigo Robinson Duckworth, conta uma história de improviso para entreter as três irmãs Liddell (Lorina Charlotte, Edith Mary e Alice Pleasance Liddell). Eram filhas de Henry George Liddell, o vice-chanceler da Universidade de Oxford e decano da Christ Church, bem como diretor da escola de Westminster. A maior parte das aventuras contidas no livro, foram baseadas e influenciadas em pessoas, situações e edifícios de Oxford e da Christ Church, por exemplo, o Buraco do Coelho (Rabbit Hole) simbolizava as escadas na parte de trás do salão principal na Christ Church. Acredita-se que uma escultura de um grifo e de um coelho presente na Catedral de Ripon, onde o pai de Dodgson foi um membro, forneceu também inspiração para o conto.

Essa história imprevista deu origem, a 26 de Novembro de 1864, ao manuscrito de Alice Debaixo da Terra (título original Alice's Adventures Under Ground) com a finalidade de oferecer a Alice Pleasance Liddell a história transcrita para o papel.

Mais tarde, influenciado tanto pelos seus amigos como pelo seu mentor George MacDonald (também escritor de literatura infantil), decidiu publicar o livro e mudou a versão original, aumentando de 18 mil palavras para 35 mil, acrescentando notavelmente as cenas do Gato de Cheshire e do Chapeleiro Louco (ou Chapeleiro Maluco).

Deste modo, a 4 de Julho de 1865 (precisamente três anos após contar a história para as meninas) a história de Dodgson foi publicada na forma como é conhecida hoje, com ilustrações de John Tenniel. Porém a tiragem inicial de dois mil exemplares foi removida das prateleiras devido a reclamações do ilustrador sobre a qualidade da impressão. A segunda tiragem, ostentando a data de 1866, ainda que tenha sido impressa em Dezembro de 1865, esgotou-se nas vendas rapidamente, tornando-se um grande sucesso, tendo sido lida por Oscar Wilde e pela rainha Vitória. Na vida do autor, o livro rendeu cerca de 180 mil cópias. Foi traduzida para mais de 125 línguas e só na língua inglesa teve mais de 100 edições.

Em 1998, a primeira impressão do livro (que fora rejeitada) foi leiloada por 1,5 milhão de dólares americanos.

Algumas impressões desta obra contêm tanto As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, como também a sua sequência Alice no Outro Lado do Espelho.


Simbolismo matemático na trama

O livro pode ser interpretado de várias maneiras. Uma das interpretações diz que a história representa a adolescência, com uma entrada súbita e inesperada (a queda na toca do coelho, iniciando a aventura), além das diversas mudanças de tamanho e a confusão que isso causa em Alice, ao ponto de ela dizer que não sabe mais quem é após tantas transformações (o que se identifica com a psicologia adolescente).

Como Dodgson era de fato professor de matemática na Christ Church, da Universidade de Cambridge é sugerida a existência de muitas referências e de conceitos matemáticos, tanto nesta obra, como na Alice no Outro Lado do Espelho. Confiram alguns exemplos abaixo:

  • No capítulo 1, No Buraco do Coelho, durante o processo de encolhimento da altura, Alice faz considerações filosóficas acerca do tamanho final com que ficará, com receio de talvez acabar por desaparecer completamente, como uma vela. Esta observação reflete o conceito do limite de uma função (cálculo I).
  • No capítulo 2, No Lago das Lágrimas, Alice tenta fazer multiplicações, mas acaba por produzir uns resultados estranhos: "Deixa-me cá ver: quatro vezes cinco são doze, e quatro vezes seis são treze, e quatro vezes sete são... Oh, meu Deus! Por este andar nunca mais chego aos vinte!". É assim exposta a representação de números utilizando bases diferentes e sistemas numerais posicionais (4 x 5 = 12 na base 18; 4 x 6 = 13 na base 21; 7 x 4 poderiam ser 14 na base 24, seguindo a sequência).
  • No capítulo 5, Conselhos de Uma Lagarta, o Pombo afirma que as meninas são uma espécie de serpentes, pois ambos seres comem ovos. Esta observação é um conceito geral de abstração que ocorre frequentemente em diversos âmbitos da ciência; um exemplo da utilização deste raciocínio na matemática é a substituição de variáveis.
  • No capítulo 7, O Chá dos Loucos, a Lebre de Março, o Chapeleiro Louco e o Arganaz dão vários exemplos em que o valor semântico de uma frase X não é o mesmo que o valor do inverso de X (por exemplo, Não é nada a mesma coisa!(...)Ora, nesse caso também podias dizer que "Vejo o que como" é a mesma coisa que "Como o que vejo"!); No ramo da lógica e da matemática este conceito é uma relação inversa.
  • Também no capítulo 7, Alice pondera o significado da situação quando o grupo faz a rotação dos lugares ao redor da mesa circular, colocando-os de volta ao início. Esta é uma representação da adição de um anel do módulo inteiro de N.
  • No capítulo 6 e 8, o Gato Cheshire desvanece , deixando apenas o seu sorriso largo, suspenso no ar, levando a Alice maravilhada ao notar que já viu um gato sem um sorriso, mas nunca um sorriso sem um gato. É feita aqui uma profunda abstração de vários conceitos matemáticos (geometria não-Euclidiana, álgebra abstrata, o início da lógica matemática, etc), delineando, através da relação entre o gato e o próprio sorriso, o próprio conceito de matemática e o número em si. Por exemplo, no lugar de considerar duas ou três maçãs, consideram-se antes os conceitos de dois e de três por si só, separados do conceito de maçã, como o sorriso que, aparentemente pertence ao gato original, é separado conceitualmente do resto do corpo físico.


Quem foi Charles Lutwidge Dodgson

Em 27 de janeiro de 1892, nascia Charles Lutwidge Dodgson, em uma tradicional e religiosa família britânica. Na escola, foi considerado brilhante – apesar de pouco disciplinado para os estudos.

Sua sensibilidade era traduzida em forma de arte. Mais especificamente, como fotografia e poesia. Em um tempo de poucas fontes de entretenimento, em que as casas ainda não tinham rádios ou televisões, Carroll era considerado uma excelente companhia, contando histórias, declamando poesia e cantando toleravelmente bem, apesar de algumas fontes afirmarem que ele era gago.

Foi assim que o rapaz aproximou-se de muitas famílias abastadas e importantes de seu tempo, criando excelentes conexões sociais.

Muitos biógrafos de Lewis Carroll retrataram o autor como pedófilo, apontando seu pouco interesse por mulheres adultas, e sua ligação emocional com garotinhas – bem como o hábito de fotografar meninas nuas ou seminuas.

Contudo, muitos autores modernos contestam essa versão, alegando que isso seria o chamado “mito Carroll”. De acordo com eles, Carroll envolveu-se com mulheres, o que teria levado, inclusive, a alguns escândalos. Sua família, após sua morte, teria ocultado todas as evidências de seus envolvimentos amorosos, para evitar desonrar seu nome – e essa falta de referências teria sido mal interpretada posteriormente por biógrafos.

Afirmam também que as fotos das crianças seria moda na Inglaterra do período vitoriano, sendo uma temática recorrente nas obras de diversos fotógrafos da época. Segundo esses pesquisadores, seria um equívoco interpretar as fotografias de Carroll fora de contexto, usando como parâmetro nossos valores dos séculos XX e XXI.


A musa inspiradora de Dodgson

Não é certo que Alice Liddell, a menina para quem Dodgson escreveu a sua mais famosa história, tenha inspirado a personagem Alice. Em vida, o próprio autor teria dito que não havia se inspirado em nenhuma criança real.

É claro que existem muitas ligações entre a Alice do livro e a do barco a remo. Para começar, as duas sagas de Alice passam-se em datas especiais: Alice no País das Maravilhas ocorre em 4 de maio (aniversário de Liddell) e Alice através do espelho se passa em 4 de novembro (exatos 6 meses após seu aniversário). Como se não bastasse, no segundo livro, a menina afirma que tem “precisamente sete anos e meio” – a idade que Alice real teria na época.

Carroll também dedicou ambos à pequena Alice, além de inserir, no final do segundo livro, um poema com uma mensagem especial – se juntarmos as primeiras letras de todos os versos, soletramos o nome completo de Liddell.


O relacionamento entre Dodgson e Alice Liddell

Há muita especulação – e controvérsia – sobre a natureza do relacionamento entre Carroll e Alice. Sabe-se que em junho de 1863 a amizade entre Carroll e a família Liddell rompeu-se de forma abrupta.


Curiosamente, a páginas do diário de Carroll correspondentes aos dias 27 a 29 de junho foram arrancadas e destruídas, assim como muitas outras páginas.

Acredita-se que o motivo para o afastamento entre Carroll e os Liddell estivesse nessas páginas, e por muito tempo popularizou-se a versão de que o autor teria pedido Alice, de apenas 11 anos, em casamento entre esses dias – o que teria levado os pais da menina a pedirem que ele deixasse sua filha em paz.

Outra teoria afirma que a mãe de Alice queimou cartas de Lewis Carroll, nas quais ele se despedia da menina com "10 milhões de beijos" e costumava pedir cachos de cabelos de presente para beijar.

Quando tinha oportunidade o escritor gostava de desenhar ou fotografar meninas seminuas, com a permissão da mãe. A maioria das fotos foram destruídas ou devolvidas, mas quatro ou cinco fotos ainda sobrevivem.

A menina Evelyn Hatch, fotografada por Lewis Carroll, em 1878

Documentos descobertos pela biógrafa Karoline Leach mostram que Carroll talvez fosse tão simpático com Alice e suas irmãs porque estava interessado mesmo era na governanta da casa.


Mesmo com o rompimento de relações entre Dodgson e a família Liddell, o escritor enviou, via um amigo, um presente a Alice no dia do seu casamento, em 1880. Embora afastado da jovem, o escritor parecia acompanhar a jovem musa a distância. Talvez por causa da amizade impar que se desenvolveu entre ambos, ou pelos motivos mais sombrios revelados acima.

Foto de Alice Liddell aos 18 anos Foto de Alice aos 80 anos de idade





Uma Versão Psicológica da História de Alice


A história de Alice seria, na realidade, triste. Lembrem-se que os grandes contos de fadas são de outra época, a realidade era diferente e os valores extremamente conservadores. Então, ter uma filha esquizofrênica era considerado uma aberração, um crime. Os pais de Alice decidiram deixa-la em um sanatório e ela permanecia, na maior parte do tempo, dopada. Quando não estava sob efeito de remédios era violentada pelos funcionários. A menina tinha apenas 11 anos.

Cada um dos personagens e objetos da história, tem a ver com um desejo ou experiência de Alice.

O buraco pelo qual ela entra no País das Maravilhas, é, na verdade, uma janela de seu quarto, onde ficou presa durante toda a vida, pela qual ela desejava sair e conhecer o mundo à sua volta.

O coelho branco, para ela, representava o tempo. Aquele tempo que ela desejava que passasse logo, para que um dia ela pudesse sair daquele lugar. O tempo que ela via passar tão rápido, porém tão lento...

O Chapeleiro Maluco era outro interno, seu melhor amigo. Alguém que deixava sua vida no hospital menos amargurada, com quem criava várias teorias de como seria a vida lá fora. O rapaz, em realidade, sofria de Síndrome Bipolar, por isso a personalidade do Chapeleiro na história, o mostrava ora alegre, ora depressivo, ora calmo, ora irritado.

A Lebre, companheira do Chapeleiro, era a menina que dividia o quarto com ele. Ela sofria de depressão profunda, e todas as vezes que Alice teve contato com ela, encontrou-a num estado de terror e paranoia.

O gato de Cheshire: um dos enfermeiros, em quem Alice confiou, mas acabou por enganá-la e violenta-la. O sorriso do gato, aquele que é tão marcado, era na verdade o sorriso obscuro que seu agressor abria, cada vez que lhe abusava, e a deixava jogada em um canto de sua acomodação, derrotada, triste e ofuscada.

A Rainha de Copas: a diretora do sanatório. Uma mulher má e desprezível, que não sentia sequer um pingo de compaixão para com os enfermos que estavam sob seus cuidados. Era a favor da terapia de choque e da lobotomia, e por diversas vezes ordenava que os funcionários espancassem, sedassem e prendessem em jaulas os enfermos que apresentavam comportamento que não lhe agradavam.

A Rainha Branca: sua mãe, uma mulher nobre e terna, que sofreu na pele o preconceito de ter uma filha doente, tendo que abandonar a menina em um sanatório, e nunca mais voltar a vê-la. As vagas lembranças que Alice possuía, era de momentos com sua mãe, e o motivo dela pensar que o mundo fora dos muros do hospital era um lugar melhor, era saber que a mãe estava lá, em algum lugar, para lhe cuidar.

Os Naipes: enfermeiros do hospital, apenas seguindo ordens o dia inteiro.

A Lagarta Azul: sua terapeuta, aquela que lhe dava as respostas, que lhe explicava o que acontecia e com quem ela conversava.

Tweedledum e Tweedledee: gêmeos siameses órfãos, que também estavam no hospital. Embora não possuíssem nenhum problema mental que justificasse sua internação, a aparência que tinham era assustadora, por isso foram reclusos.

O Rei de Copas: o médico psiquiatra do hospital. Alguém com complexo de inferioridade, que era incapaz de se opor às ordens da diretora.

Os frascos “Coma-me” e “Beba-me”: as drogas que lhe davam. Por serem extremamente fortes, por várias vezes Alice tinha sensações diferentes e alucinações, bem como se tivesse encolhido ou aumentado de tamanho.

Tudo isso foi criado pela menina como se fosse um mundo paralelo. Uma realidade menos dolorosa daquela em que vivia. Ela já não podia suportar aquele local e tudo o que acontecia com ela ali dentro, então resolveu usar de sua imaginação infantil para amenizar a dor e o sofrimento. A irmã mais velha de Alice, é na verdade uma enfermeira do hospital, a quem a pequena era muito apegada. A enfermeira tinha um diário e nele anotava todas as histórias que Alice criava em sua mente. Todos os dias a enfermeira ia até o quarto da menina e ouvia seus desabafos e as aventuras que criava em sua mente. Sem deixar de anotar uma palavra sequer.


Infelizmente, Alice  executa uma tentativa de fuga. Ela não obtém sucesso, e acaba detida pelos funcionários. A diretora furiosa, manda que espanquem a garota e apliquem a terapia de eletrochoque, para que nunca mais volte a se repetir. Após o castigo, Alice torna-se agressiva e violenta, ao ponto da diretora decidir que a única saída para ela, seria a lobotomia.

Alice viveu por muito tempo em um estado de “coma”. Ela nunca mais viveu, sorriu, tampouco falou. Devido a isso, teve seu corpo devastadoramente abusado, tanto, que acabou por ter hemorragia interna devido à violência empregada em um ato de estupro, e veio a falecer.

A enfermeira que escrevia suas histórias em um diário acabou por se afastar do sanatório, e Alice foi imortalizada como a menina sonhadora que viveu aventuras incríveis no País das Maravilhas.