01 julho, 2016

O MAUSOLÉU


   O sol já não está tão quente. A distância não é tão grande, mas eu também não tenho pressa. Vou andando e percebendo os detalhes, sem necessariamente observá-los diretamente. É apenas ir confirmando tudo que sempre é como é. As mesmas pessoas, os mesmos afazeres, as mesmas vidas repetitivas, como engrenagens de uma gigantesca máquina aparentemente sem sentido, mas que continua funcionando, funcionando, funcionando sem parar. Algumas engrenagens quebram, mas, apesar da comoção, não devem ter grande significação, pois logo tudo volta ao normal, como se a grande máquina se adaptasse.
   A subida é sempre mais dura e, apesar da ausência de pressa, ainda assim, preciso me esforçar um pouco mais. Mesmo andando devagar, posso sentir a poeira entrando pelas minhas narinas e pela minha boca. É uma sensação desagradável o arranhar seco na garganta. 
   Paro um pouco para tossir. Maldita bronquite.
   Há uma brisa muito suave; uma pequena vantagem de se estar subindo.
   Observo mais uma vez o céu de profundo azul. Algumas nuvens soltas surgem no horizonte.
   Preciso continuar subindo. Então retomo a lenta caminhada. Pé ante pé.
   A brisa atenua um pouco a incômoda sensação de falta de ar.
   As casas vão rareando, à medida que subo.
  Alguns passarinhos de fim de tarde pululam entre galhos de algumas árvores na beira da estrada poeirenta. Talvez estejam questionando a razão do caminhante humano; talvez se perguntem o que há por trás da estranha calma; talvez não questionem nada e nem mesmo dão qualquer importância ao ente andante.
    A curva antes do fim é logo ali. Já começo a ver o topo dos portões que vão surgindo aos poucos. A curva parece o trecho mais íngreme e preciso fazer mais esforço para continuar no mesmo ritmo. Ou talvez seja alguma forma de resistência inconsciente; um último grito silencioso da consciência. Na verdade, não importa.
   Antes de abrir um dos portões, volto-me e dou mais uma olhada para a cidade lá embaixo. Uma tentativa de ver diferente, o que sempre foi o mesmo. Talvez pudesse ver agora, algo que me escapou por todos estes anos. Não. Nada. A mesma vista panorâmica de sempre.
   Suspiro entediado.
  Volto-me novamente, abro o portão e entro no cemitério. Vou andando pelas ruelas mal calçadas. Mas, também, quem se importaria com isso? Os residentes não se importam com nada.
  Lápides, cruzes, fotos amarelecidas, datas esquecidas... Ecos silenciosos de um passado qualquer nas entranhas imperscrutáveis do tempo.
   Já posso ver o mausoléu. Ninguém nunca vai lá.
   O sol está descendo.
   Chego à porta, tiro a velha chave do bolso e, colocando-a na fechadura, giro-a com dificuldade, até ouvir as engrenagens ruidosas e enferrujadas culminarem num estalo pesado e surdo. Empurro a porta que reclama, mas abre.
   Entro sem olhar para trás.
   Fecho a porta apoiando as costas no metal frio e centenário. Sou como a porta; sinto-me igualmente engolido por centenas de anos, que não tenho. Ou talvez tenha.
  O sol entra pelas grades das pequenas janelas, marcando e deslizando pelas paredes mórbidas do tempo.
   Fico um tempo ali, olhando o facho de sol.
  Dou alguns passos e deito-me sobre o túmulo de pedra no meio da sala. Despeço-me definitivamente da verticalidade, sem qualquer delicadeza verbal ou intencional.
   O sol toca meu rosto e deixo o brilho ofuscar-me nos seus últimos instantes.
   A escuridão se aproxima.
   Uma lágrima silenciosa e vazia desde de meu olho. Nada sinto e já não sei se penso sequer.
   Vai ficando escura e fria a pequena sala.
  Fecho finalmente os olhos e, quando a penumbra também se despede, restando apenas a total escuridão, tudo para. Não há mais tempo; não há mais espaço. E, finalmente, nada mais importa.
   Encerro, então, o derradeiro ato. Esqueço quem sou. Não há mais razão. Não há desejo. Apenas o nada.
   Sem dor, sem temor e sem desespero, simplesmente interrompo-me e abandono o ar que já não me serve.

Fim.

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