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15 maio, 2023

Memórias de Cotswolds

Eu costumava olhar a sutil névoa que cobria as manhãs de Cotswolds, quando visitava minha avó durante as férias. Nunca tivemos isso no Brasil, ainda menos no Rio de Janeiro. Aqueles momentos matutinos em terras inglesas me faziam sentir como um personagem mitológico de um livro de aventuras que Tolkien nunca escrevera, ou que escrevera, mas estava escondido, perdido por dezenas de anos, sem que ninguém suspeitasse de sua existência; e esse pensamento me fazia sentir como pertencente à uma história esclusiva e que ninguém lera ainda.

Eu devia ter por volta de nove ou dez anos, mas já tinha essa mente fértil ou dada a viagens mirabolantes, como um prelúdio de que me tornaria escritor ou qualquer outra coisa que necessitasse de uma mente criativa e sem amarras, que nunca tivera medo de criar e viver seus mundos, embora os reservasse ao particular, com receio da dureza das outras pessoas. Minha avó alimentava isso. Como boa descendente de irlandeses, a mitologia e a magia daquelas terras fluiam pelo seu sangue, transbordavam por seus movimentos e insinuavam-se através de seu olhar sempre vivaz e cheio de mistérios, que tanto me fascinavam e confortavam, quando eu desejava ser apenas eu mesmo, sem as pseudo regras de uma sociedade cada vez mais atolada na brutalidade de um mundo fabricado por medos e dominância.

Eu andava por aquelas ruas e caminhos quase naturais, encontrava trilhas diferentes e, embora fosse uma cidade, sempre fora uma cidade repleta recantos interessantes, se é que essa seria a melhor forma de classificá-los, quando 'recantos' parece tão simplista e tão inapropriadamente insuficiente. Toda a arquitetura de Cotswolds tinha algo que me remetiam aos livros, um toque especial de algo sutil, segredos furtivos de lugares e momentos atemporais, como portais para outras dimensões e mundos insuspeitados. E eu fantasiava com fadas escondidas em moitas, que me observavam curiosas; fantasiava com passagens secretas de gnomos disfarçadas embaixo de pedras musguentas ou em pequenos e obscuros vão nos velhos carvalhos.

Eu passava minhas férias de inverno nesse lugar mágico, do qual me lembro sempre com muito carinho e um impossível desejar de que um dia retorne; mas será que ele não tem exatamente o poder de retornar sempre que relembro alguns desses momentos de minha infância distante?

Hoje sou um escritor brasileiro, porque, afinal, brasileiro sou, porém há em minhas veias o velho sangue, com toda sua herança mitológica; minha alma permanece repleta das brumas e sonhos saturados de magia antiga, que inevitavelmente verto em minha escrita, em minhas histórias, que nem sempre são previsivelmente compreendidas, e permanecem nas entrelinhas, aguardando a personalidade certa, o insólito leitor, a formidável alma capaz de decifrá-las, abrindo antigos portais e trazendo de volta a magia perdida deste mundo tão quase completamente industrial.


12 setembro, 2022

E Continuam Caçando Bruxas... (Sobre Ser/Agir Diferente)

 

Fotografia de Rui Veiga
Às vezes, apesar de minha tranquilidade (aparente), tenho vontade de transgredir e revolucionar tudo, fazendo algo totalmente inesperado e que muita gente acreditaria que seria praticamente impossível que eu fizesse. Às vezes realmente faço e as pessoas se dividem comicamente em dois grupos, os assustados e os críticos. De um momento a outro, uns passam do primeiro grupo para o outro; bem previsível, após passar o susto provocado pela surpresa do inesperado. As palavras se levantam no ar como impiedosas flechas ou permanecem as carrancas estampadas, como a quererem espantar os maus espíritos, exatamente como suas similares nas portas das casas nos costumes antigos de algumas regiões do Brasil. 

Mas, apesar de toda a comoção, se é que posso usar este termo, a bem da verdade, não imagino porque eu teria que corresponder às expectativas dos outros, coisa que só diz respeito a cada um que se atreve  a usar deste artifício pouco útil. Como diz o velho adágio popular, o que eu faço da minha vida, só diz respeito a mim e NÃO DEVERIA dizer respeito a ninguém; porém, vivemos numa sociedade onde as pessoas foram acostumadas a reagirem como se a vida alheia lhes dissesse respeito e, alguns, sentem-se profundamente ofendidos, se alguém resolve pensar ou agir diametralmente diferente do que eles (ou a sociedade) estabelecem como padrão, ou seja, o supostamente certo.

Não foram raras as vezes em que me vi numa posição curiosamente hostil e me senti até envergonhado, para depois, aos poucos, começar a perceber que a opinião dos outros pouco ou nada tinha de importância em relação às minhas escolhas e na forma em que eu decidia viver. Desde que eu não estivesse de fato prejudicando ninguém, qualquer argumento em contrário não passa de falácia e intrometimento de alguém (ou alguéns) que se acha no direito de ser o juiz que vai pautar o que é certo ou errado na vida de quem vive dentro desta sociedade.

No passado, nas gerações anteriores à minha, a coisa era ainda pior e as pessoas que ousassem "escandalizar" a suposta moral vigente, era inevitavelmente colocada à margem da sociedade e tornava-se difícil mesmo conseguir viver, pois todas as facilidades (que já eram poucas) lhes eram tiradas, pois ela se tornara pessoa "marginal". Alguma semelhança à infame e desumana cultura do cancelamento de nossos dias? Pois é. Não só diz-se que as gerações atuais tem o costume de ressuscitar os costumes de das duas décadas (ou mais) anteriores, como isso já foi provado por estudos comportamentais realizados e dezenas de matérias a respeito publicadas; o problema é que nem sempre são ressuscitados bons costumes, mas também antigos vícios, alguns bem execráveis e inadmissíveis ao progresso humano em direção a um ideal humanitário e fraternal, onde busca-se atingir um mundo melhor, com relações saudáveis tanto para conosco, humanos, quanto para com os demais seres com os quais dividimos a vida neste planetinha azul.

Mas onde estaria a falha? Seria um erro de avaliação e bom censo? Mas isso não estaria ligado ao próprio interesse individual humano em buscar realmente se melhorar e eliminar de si os próprio equívocos inerentes e interferentes em seus, não só julgamentos, mas comportamento e pensamentos?

Na Bíblia se fala de "pecados", mas tirando toda sorte de religionisses, que só trouxeram mais problemas para a epopeia humana, do que benefícios, provavelmente sempre nos tenhamos equivocado em saber o verdadeiro sentido e dimensão que se buscou atingir com a escolha desta palavra. Ao invés de pensarmos de forma tão rasa, deveríamos atentar que, talvez, se buscasse dizer, pura e simplesmente, que devemos eliminar de nós o péssimo costume de querer estabelecer padrões muito particulares e baseados em critérios provavelmente muito duvidosos para pautar a vida do semelhante, posto que este, a meu ver, tem sido o maior mal do ser humano. Em toda a história, não fizemos mais do que condenar o outro pelo que supostamente deveria ser o certo e, muitas vezes, distorcendo os fatos ou omitindo-os, vaticinamos que este suposto mal deva ser eliminado da face da terra, custe o que custar, quase sempre cometendo as maiores atrocidades em escala global, em um processo de guerras consecutivas e sem fim. E pensar que isso começa com um supostamente inocente julgamento em relação à decisão de outra pessoa, que escolhe mudar e fazer algo diferente de/em sua vida.

Talvez, o problema do ser humano não seja o ego, mas o egocentrismo, a egolatria, o egoísmo. Mudar o foco para uma possibilidade mais coletiva e em expansão constante pode ser o único caminho da "salvação" de uma sociedade aos trancos e barrancos faz tempo e que muitos consideram em claro declínio e cujo destino pode ser derradeiro, caso não consigamos virar esta chave tão necessária.

Tudo isso é um bom ponto, creio eu, para ser não só refletido e paralisado na reflexão, mas que trazido para o dia à dia os seus bons resultados; e que resolvamos também mudar nosso modus operandi, para uma vida de relacionamentos mais respeitosos e, obviamente, mais saudáveis. 

Mudar, finalmente, pode ser a melhor escolha, em vez de julgar.

27 agosto, 2020

TRANSIÇÕES

Eu esperava todos os dias meu pai chegar do trabalho. Ficar perto da porta era como uma atração inconsciente, que me levava até lá e me punha em prontidão. Ficava olhando através daquele vidro irregular, que pouco deixava ver do lado de fora, senão, quando muito, um borrão de cores, mas em meio a qual eu conseguia distinguir o movimento, a aproximação de meu pai.

Lembro que minha mãe achava graça e, como que para comprovar e se divertir com meu impulso inconsciente, me chamava, fazendo sugestões para alguma outra distração, mas a atração pela posto de prontidão era invencível; eu sempre voltava para o mesmo lugar e continuava esperando por meu pai.

É engraçado falar sobre isso hoje, pois o tempo foi orquestrando mudanças nessa admiração, através de acontecimentos desagradáveis que começaram a surgir no meio do caminho. Ou talvez já estivessem presentes, de uma forma ou de outra, mas eu não me dera conta disso, senão mais tarde, quando tive maturidade suficiente para perceber que alguma coisa estava errada. O fato, que ficou cada vez mais claro com o tempo, desde quando comecei a perceber a existência de alguma discrepância nos relacionamentos, é que não era nada as mil maravilhas que uma criança imagina. As diferenças, as dores, os erros, as mágoas... Tudo isso começou a ganhar uma dimensão cada vez maior à minha percepção e o cinza foi tomando o lugar da cores, enquanto eu despertava ara a realidade de que meus pais não eram apenas imperfeitos, mas tinham coisas muito ruins, sobretudo meu pai. Sei que parece ingratidão falar sobre isso, ainda mais por eu não ter sofrido uma vida de violências e carências extremas, muito pelo contrário, tive uma vida até boa neste sentido, mas a questão é que existem outras sutilezas capazes de nos arrastar lentamente para uma desilusão que estava longe de ser produtiva e fortalecedora. Algo me incomodava muito e cada vez mais, tornando-se um ponto em desequilíbrio nervoso, uma raiva inconsciente e a qual não conseguia explicar.

O tempo passou e fiquei mais velho, vindo a presenciar incongruências e até situações absurdas e de extrema ingratidão entre meus pais e que acabaram levando minha mãe a tentar o suicídio, tomando uma quase overdose de calmantes. É importante falar sobre isso, pois essa foi a facada derradeira, que me distanciou de vez de meu pai. A partir deste acontecimento, uma traição sem razão, logo após ele mesmo ter passado por uma depressão avassaladora, onde minha mãe tinha sido heroicamente o pilar de tudo, já que ele estava praticamente ausente, sem a menor possibilidade de conduzir a família. Depois de tudo que minha mãe suportou e fez por nós e, principalmente, por ele, a atitude inesperada e ingrata da traição foi o veneno pior, da qual uma família dificilmente consegue sobreviver. Apesar de a família seguir em frente, jamais foi a mesma e as relações esfriaram ainda mais. A conveniência social impediu que se desse o golpe de misericórdia. Depois disso, minha mãe entrou num quadro de saúde cada vez mais decadente, que acabou culminando numa série de acidentes vasculares cerebrais e, consequentemente, sua morte anos mais tarde. Essa morte foi o corte definitivo nas ligações que ainda poderiam existir entre ele e eu. Ela ter morrido foi um grande alívio para mim, pois jamais fui de grandes demonstrações emotivas, mas, por dentro, eu sofria demais em vê-la do jeito que estava ano após ano, em decadência contínua e cada vez mais mergulhada demência, que a meu ver, era física, enquanto lá dentro o espírito sofria omo numa masmorra. Eu via isso. Eu sentia isso. E a impossibilidade de mudar este quadro, de ajudá-la de alguma forma, sempre me obsediava impiedosamente.

Não morávamos mais juntos nesta época e eu seguia uma caminho totalmente diferente de antes, acentuando ainda mais a distância. E como ele nunca foi de falar muito comigo, esquecendo inclusive o dia de meu aniversário, entre outras coisas, o silêncio tornou-se uma muralha raras vezes vencida por alguma ocasião, que jamais pude chamar prazerosa.

Antes sentia-me culpado, afinal era meu pai, mas, com o tempo, o desapego foi eliminando a culpa. Afinal, somos seres em experiência própria e insubstituível, onde os passos na estrada são marcados pela solidão. Compartilhar este caminho, em alguns momentos - longos ou curtos - com algumas pessoas jamais será compartilhar a experiência interna e eu fui aprendendo isso aos poucos, quando decidi que não iria mais ficar lamentando decisões e situações passadas, que serviram apenas para  aprendizado e crescimento. Elas não existiram para que erigíssemos totens ou estátuas eternas a nos assombrarem com um passado insistentemente presente. Somos todos peregrinos de nós próprios e a forma como trilhamos este caminho, como absorvemos o (auto)conhecimento e como o utilizamos nas relações com as outras pessoas é que definirá o que nos esperará no próximo porto.

Que ele siga seu próprio caminho.


18 maio, 2017

Câncer e Conchas


Há muito tempo que passo o início do outono na casa de praia. Na verdade, foi a única coisa que me sobrou, depois que, há alguns anos descobri que tinha câncer e, como aquela velha história de que algo ruim nunca vem sozinho, fui demitido e deixei de fazer parte do quadro de funcionários da maior empresa de telecomunicações do país.

O tempo passou e acabei torrando tudo de minha conta bancária, em duas fases de tratamento quimioterápico entremeadas por uma maldita metástase. O apartamento foi-se em seguida, para poder pagar os remédios. Então, simplesmente desisti. Numa manhã de quarta-feira, peguei algumas roupas e me mandei da cidade, dos amigos e inimigos, da minha lanchonete preferida, que ficava na esquina... Me mandei daquela vida. Faziam mais ou menos uns seis meses que morava exclusivamente aqui, na casa de praia. Saía muito pouco, apenas para comprar algum mantimento. Ficava a maior parte do dia aqui, sentado, olhando o mar.

Emagreci bastante. Acho que perdi uns quinze quilos. Não importa.

Foi num dia desses, como qualquer outro, que acabei adormecendo na cadeira de balanço, sem sequer perceber o cair da noite. A brisa fresca era um alento e ajudava a aliviar as dores. Às vezes era bem difícil, apesar da morfina e da cannabis, que ajudavam à aliviar um pouco. Nestas horas era muito difícil conciliar o sono, pois a dor diminuía, mas quase nunca ia embora totalmente. Então, tinha mesmo que aproveitar qualquer oportunidade de trégua, para desligar-me desse mundo. 

Foi numa dessas vezes que ela apareceu.

Acordei e já era noite. Pensei ter ouvido alguém falar comigo. Um destes ecos ressonando na memória de lembranças de tempos que já tinham sido esquecidos e que voltam como fantasmas a reclamar a atenção, com medo de se perderem numa eternidade sem fim.

Ainda estava sob o efeito do sono, os olhos meio secos e levei algum tempo, antes de percebê-la parada nos primeiros degraus da escada, observando-me na quase penumbra, com um suave sorriso.

Tentei falar alguma coisa, mas a voz não saiu por conta de um pigarro cretino. Pigarreei e perguntei finalmente, totalmente desconfortável com a visita inesperada. Eu não recebia visitas; eu não gostava de receber visitas.

- O que você quer?
- Eu vim te buscar. - Ela disse.

Minha mente estava confusa e demorarei a concatenar as ideias, quando, finalmente, a ficha caiu.

- Mas quem é você? O que você quer?
- Eu já disse: vim te buscar.
- Mas quem diabos é você?
- E isso importa?
-  Mas é claro que importa! Então, eu acordo com uma mulher, que eu nunca vi na vida, me olhando, tomo um susto, ela me pergunta algo que não faz o menor sentido... Quer dizer, acho que disse... e ainda tenho que encarar isso como uma coisa normal?
- Eu sempre venho.

Ela tinha feições de menina, usava uma roupa estranha, como se fosse um vestido de escamas brilhantes, que cintilavam as cores do arco-íris.

Quando dei por mim, já havia levantado e caminhava a seu lado pela areia da praia.

- Preciso entender tudo isso, balbuciei.
-  Você está morrendo. - Disse-me ela. - Escutei o lamento e a revolta em teu coração. Então, resolvi que era hora de vir.
- Você, por acaso, é a morte?
- Não. A morte é bem diferente de mim. À vi poucas vezes.

Achei aquilo tudo ridículo e tive vontade de expulsá-la, mas não consegui. Havia algo de muito mais importante naquele momento e que eu não sabia dizer ou entender realmente o que era.

- Então, quem é você?
- A última amiga que te sobrou, depois que você afastou todos os outros.
- Mas eu nem te conheço.
- Não importa agora, não é mesmo?

Pensei por uns instantes. Era mesmo. Não importava. De certa forma, até estava apreciando aquele momento de realidade desalinhada.
Caminhamos pela areia sob a luz da lua, em silêncio, então; apenas apreciando a companhia um do outro.
E esta é a última lembrança que eu tenho, de quando ainda era humano.

11 novembro, 2016

Um pedacinho do livro que estou escrevendo...

Primeiras lembranças...

Por quantos anos os sonhos perduraram, atravessando desafiadoramente nuvens e hálitos de dias funestos? Quantas palavras, dissertações e silenciosos olhares eternizaram a perfeita cumplicidade inigualável e absoluta? Quantos desejos não foram apaziguados na cama perfeita, nas luzes de dias perfeitos, na companhia simples e perfeita? 

Os anos passam rápidos e, de repente, abrimos os olhos e mais nada parece como antes, como se o tempo voasse além de nosso alcance no ínfimo fechar e abrir de pálpebras. E a inevitável certeza do agora que logo passa, é o que resta para nos trazer de volta a solidão imposta, como se a felicidade tivesse que ser compensada com o isolamento de tudo quanto foi o mais importante.

A despedida não é algo fácil, mas a aceitação de seguir em frente é a pior dor de todas, quando se segue então sozinho.

Faz dez anos que ela se foi e, ainda assim, permanece a dificuldade de aceitar o eco de sua voz, como um suspiro sutil, que parece passear por todos os cômodos da velha casa, explorando possibilidades de trazer de volta o passado, quando em realidade é apenas um reflexo de lembrança que escapa à sanidade e resvala pela mente distraída, dando a impressão da atemporalidade, como se nada tivesse mudado, fazendo-nos esquecer a realidade presente e reviver o amor tão vivaz quanto a realidade do passado que se foi.

A casa já não tem a vivacidade de antes. Os móveis continuam nos mesmos lugares, mas já não se tem forças para subir as velhas escadas em caracol, que leva até a suíte de tantos sonhos, tantos momentos inesquecíveis. Melhor assim. Já é bastante difícil conviver com as muitas lembranças que o resto da casa amotina-se contra mim. 

O tempo passou e muita coisa mudou nestes dez anos. O velho carro continua na garagem, sem utilidade. Um bibelô, uma lembrança dos tempos de motores a explosão e a necessidade de veículos para se transportar de um lugar a outro. Os tempos são outros. As ruas são dos pedestres que vejo através das vidraças empoeiradas, quando me animo a olhar para o mundo lá fora. Os meios de transporte usuais ficaram obsoletos. Apenas eu permaneço aqui, isolado do presente, numa vã tentativa de perpetuar o passado, em nome de um amor que teima em não morrer. Talvez só minha morte possa devorar a ânsia inesgotável deste sentimento que perdura, que insiste em me acompanhar. Oh! Como leviano me tornei. Rio de minhas próprias lamentações, quando meu único desejo é manter esta chama dentro de mim indefinidamente, posto que sua luz ilumina o que me resta de sã consciência. 

Como me fazes falta, minha querida...


29 agosto, 2016

O Meu Deserto


Todos tem o seu deserto.

No meu deserto está a ansiedade e a impaciência, que minha ignorância expira de cada inspiração plantada pelos sonhos e a vontade insaciável de ser alguém melhor.

No meu deserto está minha estupidez, que perambula entre as dunas do esquecimento de tantas vidas sufocadas de erros e salvas por alguns acertos.

No meu deserto estou eu mesmo, horas tentando fugir de mim próprio, horas tentando encontrar-me por trás de minhas montanhas de dores, insatisfações e reclamações idiotas.

Todos tem um deserto.

E no meu deserto está a morte. Inefável personagem que anda me rondando, reservando-me surpresas e sorrindo sedutora, como a passagem para um jardim quase irresistível.

No meu deserto há um espelho, que reflete de volta toda minha vaidade agonizante, enquanto posso finalmente sorrir a liberdade que só o desapego sincero poderia ofertar-me, enquanto mato lentamente o ego senil.


06 outubro, 2015

Memórias d'O Tablado: Depois das férias

Lembro de certa vez, quando acabaram as férias e retornamos para o segundo ano de aulas no O Tablado. Cheguei mais cedo, deixei minha mochila num dos acentos e subi ao palco. Não havia ninguém lá, além de mim. Olhei ao redor, a bancada, as luzes, a coxia, a platéia... Uma sensação de certa felicidade, de satisfação por estar matando uma saudade espalhava-se por cada célula de meu corpo.

Dei alguns passos, senti o cheio de lugar antigo. Todos os anos de aventuras, músicas, estórias estavam comprimidos naquele lugar, cada um na sua dimensão própria de tempo, coabitando naquele mesmo espaço, num eterno apresentar-se, entre mundos e consecutivamente.

Então, chegou um colega de turma. Não lembro-me muito bem quem era... acho que era o Leandro Hassun. Ele percebeu de cara o que se passava comigo e soltou um comentário que virou a descrição perfeita do que aquele lugar especial estava se tornando para mim: - É bom voltar pra casa, né? 

Fiquei surpreso de uma forma diferente, como quem descobre aquela palavra que estava tentando lembrar, para descrever algo. A sensação de ver-se compreendido e de compreender a si próprio.

Pronto! Esse momento acabara de se tornar um ponto inesquecível de minha memória e que levarei comigo, como quem acaricia um bebê nos braços e, ao mesmo tempo, é acariciado por alguém que ama. Um ponto na minha história, onde lembro-me que sou um pouco mais humano.