27 agosto, 2020

TRANSIÇÕES

Eu esperava todos os dias meu pai chegar do trabalho. Ficar perto da porta era como uma atração inconsciente, que me levava até lá e me punha em prontidão. Ficava olhando através daquele vidro irregular, que pouco deixava ver do lado de fora, senão, quando muito, um borrão de cores, mas em meio a qual eu conseguia distinguir o movimento, a aproximação de meu pai.

Lembro que minha mãe achava graça e, como que para comprovar e se divertir com meu impulso inconsciente, me chamava, fazendo sugestões para alguma outra distração, mas a atração pela posto de prontidão era invencível; eu sempre voltava para o mesmo lugar e continuava esperando por meu pai.

É engraçado falar sobre isso hoje, pois o tempo foi orquestrando mudanças nessa admiração, através de acontecimentos desagradáveis que começaram a surgir no meio do caminho. Ou talvez já estivessem presentes, de uma forma ou de outra, mas eu não me dera conta disso, senão mais tarde, quando tive maturidade suficiente para perceber que alguma coisa estava errada. O fato, que ficou cada vez mais claro com o tempo, desde quando comecei a perceber a existência de alguma discrepância nos relacionamentos, é que não era nada as mil maravilhas que uma criança imagina. As diferenças, as dores, os erros, as mágoas... Tudo isso começou a ganhar uma dimensão cada vez maior à minha percepção e o cinza foi tomando o lugar da cores, enquanto eu despertava ara a realidade de que meus pais não eram apenas imperfeitos, mas tinham coisas muito ruins, sobretudo meu pai. Sei que parece ingratidão falar sobre isso, ainda mais por eu não ter sofrido uma vida de violências e carências extremas, muito pelo contrário, tive uma vida até boa neste sentido, mas a questão é que existem outras sutilezas capazes de nos arrastar lentamente para uma desilusão que estava longe de ser produtiva e fortalecedora. Algo me incomodava muito e cada vez mais, tornando-se um ponto em desequilíbrio nervoso, uma raiva inconsciente e a qual não conseguia explicar.

O tempo passou e fiquei mais velho, vindo a presenciar incongruências e até situações absurdas e de extrema ingratidão entre meus pais e que acabaram levando minha mãe a tentar o suicídio, tomando uma quase overdose de calmantes. É importante falar sobre isso, pois essa foi a facada derradeira, que me distanciou de vez de meu pai. A partir deste acontecimento, uma traição sem razão, logo após ele mesmo ter passado por uma depressão avassaladora, onde minha mãe tinha sido heroicamente o pilar de tudo, já que ele estava praticamente ausente, sem a menor possibilidade de conduzir a família. Depois de tudo que minha mãe suportou e fez por nós e, principalmente, por ele, a atitude inesperada e ingrata da traição foi o veneno pior, da qual uma família dificilmente consegue sobreviver. Apesar de a família seguir em frente, jamais foi a mesma e as relações esfriaram ainda mais. A conveniência social impediu que se desse o golpe de misericórdia. Depois disso, minha mãe entrou num quadro de saúde cada vez mais decadente, que acabou culminando numa série de acidentes vasculares cerebrais e, consequentemente, sua morte anos mais tarde. Essa morte foi o corte definitivo nas ligações que ainda poderiam existir entre ele e eu. Ela ter morrido foi um grande alívio para mim, pois jamais fui de grandes demonstrações emotivas, mas, por dentro, eu sofria demais em vê-la do jeito que estava ano após ano, em decadência contínua e cada vez mais mergulhada demência, que a meu ver, era física, enquanto lá dentro o espírito sofria omo numa masmorra. Eu via isso. Eu sentia isso. E a impossibilidade de mudar este quadro, de ajudá-la de alguma forma, sempre me obsediava impiedosamente.

Não morávamos mais juntos nesta época e eu seguia uma caminho totalmente diferente de antes, acentuando ainda mais a distância. E como ele nunca foi de falar muito comigo, esquecendo inclusive o dia de meu aniversário, entre outras coisas, o silêncio tornou-se uma muralha raras vezes vencida por alguma ocasião, que jamais pude chamar prazerosa.

Antes sentia-me culpado, afinal era meu pai, mas, com o tempo, o desapego foi eliminando a culpa. Afinal, somos seres em experiência própria e insubstituível, onde os passos na estrada são marcados pela solidão. Compartilhar este caminho, em alguns momentos - longos ou curtos - com algumas pessoas jamais será compartilhar a experiência interna e eu fui aprendendo isso aos poucos, quando decidi que não iria mais ficar lamentando decisões e situações passadas, que serviram apenas para  aprendizado e crescimento. Elas não existiram para que erigíssemos totens ou estátuas eternas a nos assombrarem com um passado insistentemente presente. Somos todos peregrinos de nós próprios e a forma como trilhamos este caminho, como absorvemos o (auto)conhecimento e como o utilizamos nas relações com as outras pessoas é que definirá o que nos esperará no próximo porto.

Que ele siga seu próprio caminho.


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