22 setembro, 2017

A Verdadeira História de CHAPEUZINHO VERMELHO

Contos de Fada fazem a alegria de crianças em todo mundo, abrindo as portas para reinos de imaginação e de sonhos, onde tudo é possível. Mas nem sempre foi assim.


As primeiras versões de algumas das mais conhecidas fábulas infantis não tinham nada de encantadoras ou alegres, muito pelo contrário, elas eram horrendas, violentas e grotescas. Serviam acima de tudo como parábolas sobre moralidade e comportamento. Nelas as crianças que não agiam conforme o esperado, sofriam, eram repreendidas ou simplesmente morriam de forma aterrorizante deixando uma lição de moral.

Um dos contos de Fadas mais famosos de todos os tempos, "Chapeuzinho Vermelho" pode parecer inocente para a maioria, mas quando a fábula surgiu, ela era muito diferente. Haviam conotações ocultas que tornavam a história da menina que leva doces para sua avozinha algo bastante sinistro. 

A origem de "Chapeuzinho Vermelho" (Little Red Riding Hood) pode ser traçada até muito antes do século XVII, quando surgiu sua primeira versão escrita. Antes ela já figurava no folclore e tradições orais de vários países da Europa. Algumas destas versões eram bastante diferentes, embora diversos elementos fossem comuns e pudessem ser reconhecidos. A fábula era contada por camponeses franceses no século XI, documentada pelo historiador Egbert de Liege em 1550. Na Itália, ela era popular entre camponeses desde o século XIV, sendo que existiam várias versões, incluindo "La finta nonna" (A Falsa Vovozinha) uma das mais difundidas. Chapeuzinho foi reescrita várias vezes, inclusive por Ítalo Calvino que a acrescentou em seu compêndio de folclore. Versões da mesma fábula também podiam ser encontradas na Suécia, Noruega, Alemanha, Países Baixos e Espanha.

Essas primeiras variações da fábula se diferem das versões atuais em vários aspectos. O antagonista principal nem sempre é o "Lobo Mau", o monstro algumas vezes é retratado como um ogro, vampiro ou troll. Em algumas versões, a criatura é um lobisomem, o que tornou a história extremamente relevante nos julgamentos de criminosos suspeitos de licantropia durante a Idade Média. O famoso Julgamento de Peter Stumpp, na Alemanha, se valeu da fábula para enquadrar o acusado.

[Sobre esse caso chocante, leia AQUI]


A história em algumas versões era realmente bizarra.

O lobo deixava o corpo da velhinha para a criança se alimentar, dizendo que se tratava de carne de cordeiro. Faminta pela sua jornada, a criança comia avidamente e canibalizava a própria avó. Em outra versão, o lobo confronta a velha e a obriga a remover suas roupas ou jogá-las na lareira. A velha fica aterrorizada por ser forçada a se desnudar diante da fera, mas o lobo diz: "Não se preocupe, não é essa a fome que eu pretendo saciar!". Finalmente quando a mulher está despida, ele a devora. Em uma versão especialmente aterrorizante, a história termina quando a menina deita com o lobo na cama e este a mata. Numa outra, chapeuzinho percebe o disfarce do lobo que assumiu a identidade da avó, e se desculpa, retornando para a floresta, alegando que havia esquecido a cesta que carregava. O lobo no entanto, amarra um barbante no pé da criança e a persegue pela floresta em uma caçada implacável. Em boa parte das histórias não existe sequer a figura do caçador. A menina fica por conta própria, precisando enfrentar o medo e a ameaça do lobo recorrendo apenas a sua inteligência. Na Espanha, a menina dá lugar a uma adolescente que tenta escapar de investidas claramente sexuais por parte do lobo. Na Polônia, a menina dá lugar a um rapaz. O capuz vermelho está quase sempre presente, mas em algumas versões a protagonista usa uma capa feita de folhas verdes.  

Em uma versão francesa, Chapeuzinho escapa graças à ajuda de uma lavadeira que aconselha a menina a pular em um rio e se manter debaixo d'água. Quando o capuz vem à tona, o lobo acha que a criança se afogou e vai embora. Na Ucrânia, o lobo é empurrado no fogo pelo espírito da avó que ressurge como um fantasma para salvar a menina no último momento. No final dessa história, a menina é severamente repreendida pelo fantasma da avó que culpa a neta por ter sido tola e ter causado sua morte. A menina adota a identidade da avó e passa a morar na casa que pertenceu a esta como compensação.

Especialistas em folclore conduziram uma pesquisa em 2009 na qual identificaram 58 versões diferentes de Chapeuzinho Vermelho.


A versão impressa mais antiga tem o título "Le Petit Chaperon Rouge" e teve sua origem em meados de 1670. Ela fazia parte de uma coleção de fábulas a respeito de moral e comportamento infantil. Nessa versão Chapeuzinho Vermelho pegava um atalho apesar da mãe alertá-la para nunca fazê-lo. Por conta disso, o lobo encontrava a menina e matava sua avó. O conto deixava implícito que a culpa pela tragédia era unica e exclusivamente da criança que não obedecia as instruções da mãe.

Em 1697, Charles Perrault escreveu uma das versões mais conhecidas da fábula que foi responsável por popularizá-la em toda Europa. Esta é possivelmente uma das versões mais violentas e sinistras de Chapeuzinho Vermelho. A menina conforme a descrição de Perrault é "atraente e bem criada", quase uma adolescente, nascida em uma aldeia no interior da França. Na história, o lobo engana a menina e a convence a revelar a localização da casa de sua avó. O lobo age de forma simpática, engana e seduz sem jamais parecer malvado. A seguir, ele corre até a casa, evitando um grupo de lenhadores que haviam advertido a menina do perigo de falar com estranhos. Chegando na casa, o lobo devora a velha de maneira sangrenta. "As mordidas arrancam pedaços e dilaceram seu corpo".

Ele então veste os trajes da avó e prepara sua armadilha. A menina chega e embora desconfie de que algo está errado, acaba cedendo ao pedido do lobo disfarçado para que suba na cama. O lobo então a ataca com a mesma violência e a devora viva. A história se encerra dessa maneira, com o lobo emergindo como o vencedor e todas as demais personagens caindo como vítimas. 

Não existe final feliz, Perrault explica a moral da história no último parágrafo para que não reste nenhuma dúvida de seu significado:

"Com essa fábula aprendemos que crianças, especialmente moças jovens, bonitas e bem nascidas, correm perigo ao falar com estranhos. Lobos, afinal de contas, podem espreitar em qualquer estrada. Nós dizemos "lobos", mas nem todos lobos são iguais, alguns são simpáticos e agradáveis - não são selvagens ou furiosos, mas domados. Eles seguem as jovens pelas estradas e ruas, se preciso, até suas casas. Por sinal, é bom saber que esses lobos gentis e simpáticos, são de longe os mais perigosos!".  

Esta versão presumivelmente a original da fábula escrita na França se tornou popular na corte do Rei Louis XIV. O Rei costumava entreter seus convidados em festas extravagantes e estes sem dúvida conseguiam entender perfeitamente o sentido da história. O termo "lobo" começou então a ser associado a homens interessados em assediar e perseguir moças mais jovens.

No século XIX os irmãos Jacob  e Wilhelm Grimm - conhecidos como Irmãos Grimm, adaptaram a história e introduziram elementos inovadores na trama. A primeira parte da trama adaptada é bastante semelhante a história de Perrault, entretanto eles modificaram o final: a menina mata o lobo depois de reconhecer se tratar de uma fera disfarçada. Ela consegue empurrar o lobo na direção de uma lareira acesa e este morre queimado. A avó, no entanto, não sobrevive.

Em uma segunda revisão, os irmãos escreveram nova mudança, a menina e a avó são devoradas pelo lobo, mas na última hora um caçador atrás da pele da fera o mata. Ao abrir a barriga do lobo encontra avó e neta em seu interior ainda vivas. A lição de moral é transmitida, mas sem o trauma da morte ou tragédia.

Em 1857, Chapeuzinho Vermelho já havia se tornado a história de maior sucesso dos Irmãos Grimm e eles decidiram fazer uma terceira versão que amenizava ainda mais o final. Nela, incluíram a menina reconhecendo o disfarce do lobo e fugindo sem ser devorada. Ela corre para o caçador e este mata a fera e remove a avó de sua barriga. Essa talvez seja a versão mais próxima da história que ouvimos quando criança. Nela, ninguém morre, a não ser o "pobre" lobo mau. É curioso que os Irmãos Grimm, conhecidos por escrever histórias de conteúdo macabro tenham decidido atenuar justamente essa narrativa e adotar um final feliz.

Além do alerta contra falar com estranhos e trilhar caminhos desconhecidos, a fábula de Chapeuzinho Vermelho sempre esteve aberta a interpretações de caráter sexual. A história pode ser encarada como uma alegoria a respeito do ritual de passagem da infância para a puberdade. A menina deixa de ser criança e transforma-se em adulta no momento em que sai da barriga do lobo. O capuz usado por ela, vermelho, claramente alude à primeira menstruação. Sigmund Freud também usou o conto como uma alegoria de amadurecimento e renascimento.

É curioso que a origem de alguns dos mais famosos contos de fada encontre-se ligada muito mais ao horror do que a fantasia. Estas pequenas histórias não surgiram como uma forma inocente de entretenimento infantil, mas como chocantes revelações visando ensinar aos pequenos como o mundo real poderia ser assustador e perigoso. 

*     *     *

Para quem achou interessante, indico o filme "A Companhia dos Lobos" (The Company of Wolves/ 1984) que reconta de uma maneira aterrorizante a fábula de Chapeuzinho Vermelho e que me assustava terrivelmente quando eu era criança.

As cenas da transformação e do lobo emergindo de baixo da pele de uma pessoa, com o focinho brotando de dentro da boca sempre me causaram pesadelos. Hoje em dia, o estilo chocante e a aura quase barroca do filme perderam um pouco seu poder de sugestão - é difícil assustar nos dias atuais, mas quando assisti esse filme (ainda criança) fiquei positivamente apavorado. 

Desde então, jamais encarei Chapeuzinho Vermelho como uma história de ninar. A não ser para quem quer ter pesadelos depois de ouvi-la.

Aqui está o trailer de Companhia dos Lobos:


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