12 setembro, 2017

O ÚLTIMO XAMÃ

Nasci no meio do deserto. Para ser mais exato, dentro da reserva Los Coiotes. Meus pais eram filhos de antigos pioneiros que haviam desbravado o grande desconhecido oeste da América. Desconhecido e perigoso. Apesar de toda uma caravana ter sido massacrada, meus avô foi poupado. George Oldtown era seu nome. Falava um pouco de algumas línguas indígenas; fragmentos; mas acredito que o que lhe tenha salvado a vida fora a medicina. Isso mesmo. Meu avô era médico e sabia o valor de uma vida, como poucos naquela época e ainda hoje. A verdade é que foi realmente poupado. Tornou-se o único verdadeiramente amigo dos índios, sobretudo do velho xamã da tribo que, posteriormente, lhe apresentou a outros xamãs de outras tribos de Cahuilla e de Cupeno.

Um dia, como não poderia deixar de ser, meu avô enamorou-se de uma bela índia, filha de um dos chefes e teve que passar por verdadeiramente difícil prova, quase perdendo a vida, para que pudesse finalmente merecê-la. Nunca soube ao certo como teria sido esta prova, pois tive muito pouco contato com ele. Era muito pequeno, quando um dia ele sentou-se debaixo da árvore, no alto da colina e simplesmente adormeceu para sempre. Lembro-me de fragmentos de diversas histórias que me contava, quando eu ainda era bem novo, mas nada além disso. Meu pai, por sua vez, sempre fora muito calado e nunca me falou muito sobre ele.

Minha família, portanto, tem ancestrais dos dois lados, brancos e índios. Apesar da modernidade, mantivemos a maior parte de nossos costumes, mesmo com a sedução midiática da TV e do rádio. Nunca chegamos de fato a excluir os costumes do homem branco, no entanto, sabíamos separá-los de acordo com o que era realmente relevante e sadio.

Apesar de calado, às vezes meu pai abria a boca para contar histórias, num tom que quem já estava pensando naquilo há algum tempo e precisava falar, como uma forma de não esquecer. Por mais que me contasse das absurdas e violentas atitudes da maioria dos brancos em relação ao índios, de forma a dar-me consciência de que apenas meu avô tinha convivência amigável e respeitosa com eles, enquanto outros os massacravam de diversas formas através da história da América, só realmente dei-me conta disso há pouco tempo, quando forasteiros chegaram à nossa reserva, com “boas intensões”. Logo mostraram sua verdadeira cara, apresentando documentos, que praticamente nos expulsavam de nossas terras. No entanto, era nossa reserva, nossa terra e, por mais poderosos que fossem seus amigos do governo, resistimos com tudo que tínhamos. Mas os tempos têm suas próprias razões e a vida misteriosa traça caminhos quase sempre muito estranhos. Numa emboscada muito bem articulada, mataram praticamente toda a tribo.

Antes que tudo isso acontecesse, como que prevendo o desenlace trágico, meu pai entregou-me uma mochila cuidadosamente preparada e mandou-me esconder nos desfiladeiros, dizendo-me que não voltasse, até que ele mesmo fosse me buscar. No entanto, depois de todo um dia de espera, resolvi desobedecer e voltar por conta própria.

À medida que me aproximava, vi uma coluna de fumaça. Meu coração acelerou rapidamente. Mesmo sem entender, podia sentir no íntimo a tragédia que se abatera sobre todos nós. A casa queimava o que restara de sua estrutura e meu pai estava amarrado ao curral. Embaixo de seu corpo sem vida, uma enorme mancha de sangue, que o solo seco do deserto absorvera em grande parte.

Corri para o outro lado tentando entender o que acontecera e procurando por minha mãe, mas não pude achá-la, senão alguns minutos mais tarde e, mesmo assim, não a reconheci de imediato. Estava desfigurada e irreconhecível. Mas então, vi o colar de meu avô, que fora usado para estrangulá-la. 

Caí de joelhos e, sem poder mais conter-me, chorei. Nem sei por quanto tempo fiquei ali, enquanto as lágrimas desciam.

Depois de passado um tempo que jamais saberei dizer ao certo, levantei-me e, voltando-me para sudoeste, pus-me em direção da tribo Cahuilla. Corri o mais rápido que pude, até que, tomado de horror, vi cenário semelhante descortinar-se à minha frente. Fumaça, destruição e morte. A cena era horripilante.

Em estado de choque, perambulei pela tribo, entre cadáveres mutilados e carbonizados. 

De repente, escutei um murmúrio. Corri em sua direção e encontrei o velho xamã sob parte do couro que cobria a entrada de sua casa. Seu crânio estava afundado na parte superior esquerda e seu nariz sangrava muito. Com o pouco de voz que lhe restava, contou-me o que acontecera com meus pais. 

Chorei. Chorei de tristeza. Chorei de desespero. Chorei de raiva.

Quis saber o porquê de tudo aquilo, mas o velho amigo xamã já não pertencia a este mundo. Então levantei-me e olhei ao redor tentando ver alguma coisa por trás das lágrimas que embaçavam-me a visão. A morte estava por toda parte e eu estava sozinho. Nada mais restara. Ninguém sobrara, a não ser eu, ali, de pé, olhando e não querendo ver nada daquilo.

Fiquei por ali algum tempo, até que resolvi voltar para casa. Perambulei sem forças e sem pressa. Queria que tudo não passasse de um pesadelo sem sentido, do qual acordaria a qualquer instante, mas não acordei nunca mais.

No dia seguinte, sentindo-me um corpo sem alma, enterrei meu pai, mas não tive coragem de fazer o mesmo com minha mãe. Não fui capaz de suportar a visão de seu corpo em pedaços novamente. Os coiotes viriam. Eles viriam e conduziriam seu em nova vida, através de suas próprias vidas. Não era desumano, como a tradição do homem branco consideraria, mas sim, respeitoso. A Mãe Terra cuidaria do que não fui capaz de cuidar, através de seus filhos, nossos guardiões na tradição de meu povo.

Senti que precisava ir embora. Aquele não era meu mundo. Meu mundo era onde todos viviam felizes; meu pai, minha mãe, os amigos… Meu mundo era belo de sua maneira. Aquele não era meu mundo. Eu não queria que fosse, embora eu soubesse que era e nada pudesse fazer para que tudo voltasse a ser como era antes.

Resolvi partir à noite. A lua estava cheia, então o caminho estava claro. Levei o que pude, além da mochila, sem e preocupar com o peso. Já no meio da madrugada queria me desfazer da maioria das coisas que carregava, pois era impossível continuar com tanto peso. Joguei pelo caminho o desnecessário e levei o que pude de comida. No meio da madrugada, percebi a presença de alguns coiotes, que acompanhavam-me de longe. Andaram junto comigo por várias horas e depois desapareceram. Antes do dia amanhecer, aconcheguei-me numa fenda do desfiladeiro e caí num sono pesado e agitado por imagens de fogo, morte e desespero, entremeados por visões de águias, rituais, imagens do xamã que me abençoava e momentos em que sentia-me flutuar acima das montanhas.

Acordei com o sol queimando furiosamente meu rosto. Já devia ser metade do dia, pois o sol estava quase no meio do zênite.

Voltei a andar em direção ao sul, sem saber para onde estava indo e o que encontraria. Era preciso dar as costas para tudo, ou o passado me perseguiria implacavelmente. É duro ter que admitir isso, mas é a única solução. Ainda assim, é possível que ele venha atrás de mim, exigindo a vingança que eu não quero brandir. Melhor é virar as costas e acreditar que a vida agora é outra, pois o caminho segue em frente, sempre em frente. O resto não importa. Simplesmente não importa.

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