19 julho, 2018

O VULTO


- Há um lapso de tempo. - Foi esta a conclusão que cheguei, depois de tanto tempo observando cuidadosamente a esquina da rua. Por sempre ter sido uma rua deserta, longe de tudo, jamais despertaria a atenção de qualquer curioso que, por acaso, passasse por ali e prestasse um pouco mais de atenção.

A questão é que o lapso temporal só pode ser percebido, se alguém se predispor a ficar observando a distorção de realidade resultante da discrepância de frequência. Por sorte ou azar, eu fui esta pessoa. O que mais tenho é tempo, desde que fui atingido por uma bala perdida. O resultado do acidente, uma certa dificuldade para andar, o que me rendeu a bela aposentadoria da aeronáutica. Aposentadoria de tenente. Não é lá grandes coisa, mas é uma aposentadoria muito melhor do que muito civil por aí.

Comecei a perceber que algo estava errado, quando comecei a ver certas repetições de fatos. A princípio, pensei se tratarem apenas de deja-vu ocasional, como é bem normal acontecer com todo mundo. Mas é bem aí, que a porca torce o rabo, pois a coisa toda começou a acontecer repetidas vezes e sempre no mesmo local. Então resolvi investigar, o que acabou me levando a situação em que me encontro agora. Mas não quero me adiantar, para que as coisas façam mais sentido e eu possa, enfim, justificar os fatos.

A anomalia ficou mais clara, quando resolvi montar minha velha câmera na varanda e deixá-la filmando o tempo que desse. Confesso que tinha esperança de ver alguma coisa que olhos geralmente não veem, mas realmente me surpreendi om o resultado.

Quando fui assistir a gravação, percebi que a anomalia realmente distorcia a realidade e pude ver vultos saindo do que parecia ser exatamente o outro lado do poste de energia. Os vultos, que, diga-se de passagem, tinham a forma humana, simplesmente saiam de trás do poste, sem que o tivessem cruzado do lado contrário, exatamente como se o poste estivesse colado a um muro e não pudéssemos ver o lado direito, apenas o lado esquerdo. No entanto, não havia muro algum, pois o poste estava no meio-fio, bem na esquina da rua. Foi quando me dei conta, de que poderia estar presenciando um portal de algum tipo, vindo de não sei onde, para nossa realidade. Por isso havia um lapso temporal, que causava o tal deja-vu, que falei a pouco.

É, eu sei. Parece coisa de maluco mesmo. Eu também pensei que não estava regulando bem, mas estava ali, gravado pela câmera! Não era coisa da cabeça de um inválido desocupado, que fica imaginando coisas. Estava lá, gravado.

No início tive medo de fazer qualquer coisa a respeito, mas eu já tinha ido longe demais e, agora, minha herança militar me impulsionava a desvendar o caso; a saber que diabos era aquilo. Fiquei alguns dias pensando o que fazer e cheguei à conclusão de que não havia outro jeito, a não ser ir direto ao ponto da anomalia e tentar analisar a questão de perto.

Logo na primeira noite, para meu espanto, pude perceber de dois metros de distância, aquilo que a câmera havia gravado. No entanto, eles - os vultos - pareciam não se darem conta de minha presença. Eles surgiam do nada e, à passagem de cada um, a realidade distorcia, como a superfície de um lago em que se joga uma pedra. Foi quando resolvi tocar o local, onde estava o suposto portal interdimensional - assim passei a chamar a anomalia. Foi uma péssima ideia, pois quando estiquei o braço para toda o espaço que parecia um vazio no ar, um dos vultos atravessou de lá pra cá, percebendo-me. Ele parou diante de mim, em sua natureza disforme, como uma névoa ao vento e pareceu analisar-me. E, de repente, sem que eu esperasse, num movimento rápido, acertou-me no peito, jogando-me à três metros de distância. Embora eu estivesse tonto com o ataque inesperado, percebi que ele vinha em minha direção. Então, saquei minha pistola e disparei três tiros em sua direção. Ele imediatamente desapareceu no ar. Ainda nervoso com aquele embate sobrenatural foi quando me dei conta de que alguém estava caído ao solo, exatamente após o local onde estava o vulto. Foi exatamente assim que tudo aconteceu. Foi um acidente. Eu não imaginei que aconteceria isso. Nunca ninguém passa por ali. como eu iria imaginar que...

- Confesso que estou surpreso. Não imaginei que o senhor iria tão longe. Mas é de se admirar sua capacidade criativa. Até quando o senhor vai insistir nessa versão estapafúrdia?

- Mas estou sendo sincero! Poderia inventar qualquer coisa, mas optei por dizer a verdade.

- Sim. O senhor disse a verdade. Mas a verdade de uma pessoa normal é diferente da verdade de um  esquizofrênico. Desculpe, senhor Garcia. Mas devo continuar prescrevendo os mesmos remédios, definitivamente aumentando as doses, até que haja uma regressão de sua patologia e possamos acessar a realidade que o senhor parece ignorar.

- Eu não sou louco! Parem de me tratar como um doente! Eu sou um tenente reformado de Aeronáutica! Vocês tem que me respeitar.

- Podem levá-lo. Assim que ele for colocado na cela, administrem os remédios prescritos e aumentem em dois ml cada um.

- Não! Você tem que me escutar! Há um portal! Eles estão vindo pra cá a todo momento! Há uma conspiração em andamento...

Os enfermeiros levaram o sr. Garcia, fechando a porta atrás deles. O psiquiatra levantou-se de sua cadeira, foi até a janela e deu uma tragada em seu cigarro. No céu lá fora, as nuvens se aglomeravam prenunciando uma tempestade que logo cairia.

O psiquiatra deu mais uma tragada no cigarro e reparou em seu reflexo no vidro da janela. Percebeu que sua máscara estava torta e, por um pequeno buraco no pescoço, uma pequena sombra agitada se mostrava, como um vulto por trás de sua pele. Prontamente repuxou o tecido tapando o buraco. Novamente sua pele estava perfeita. Inspirou com vontade, apagou o cigarro no cinzeiro e saiu da sala.

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